Há semanas, as ruas do Brasil clamam por um novo país. Isso não necessariamente tem a ver com deposições – embora hoje tudo seja possível de se pensar -, mas sinaliza um claro descontentamento com a maneira pela qual o povo tem sido tratado em seu dia-a-dia cotidiano.
Inegável dizer que o Brasil contemporâneo é avançado em relação ao caos de antes – mesmo que organizações de comunicação prevejam o “fim” da nação meramente por interesses próprios bastante escusos. Mas era e é preciso muito mais. A vida não se resume a pequenas evoluções de renda pessoal.
E não se pode também negar que o descaso, o oba-oba, a carnavalização do dinheiro público, as práticas espúrias de certa parte do empresariado e a “austeridade” que remete aos tempos de Sandra Cavalcanti forjaram, ao longo destes anos, um sacão cheio da população urbana nas grandes cidades brasileiras: é ela quem pega ônibus, trens e metrô pavorosos e lotados, é ela quem convive literalmente de frente para o crime, é ela quem enfrenta a angústia dos hospitais públicos apodrecidos – um dia, eles foram muito bons até ser estabelecida a corja dos planos de saúde. E é esta mesma população que tem sofrido com a elitização do nosso futebol; alijada dos estádios, atesta a “modernidade” das novas praças de futebol que jamais desfrutará – ou alguém acha que o Maracanã do Sr. Batista terá ingressos a dez reais? Aqui está outro erro crasso: quem defende a elitização das arquibancadas não percebe que isso é impossível de ser atendido, pois a classe abastada tem interesse apenas pontual em jogos de futebol, uma ou outra efeméride. E só.
Logo de saída, gaviões da política nacional tentaram apropriar-se das manifestações populares com o eterno comportamento mesquinho. Mas o bom-senso indicou que era hora de se calar diante da raiva das ruas, que não está abortando um partido político em prol de outro, mas sim rejeitando todo um sistema, um status quo inaceitável para a verdadeira democracia. Enquanto isso, a festa da Copa das Confederações tem servido para mostrar ao mundo inteiro que boa parte dos brasileiros não está satisfeita com um país de shopping centers, tributos a Miami, consumismo oco e leitura alguma, ostentação de riqueza e poder. O saco encheu. E muito. Temos lindos estádios, mas todos foram construídos com custos três ou quatro vezes acima do estimado – e quem pagou isso do bolso hoje grita nas grandes avenidas do Brasil, com inteira justiça.
Em 1970, infelizmente o futebol brasileiro serviu como ópio e cortina de fumaça enquanto a ditadura de Médici praticava os piores horrores contra a população civil. Os nossos craques em campo esculpiam o melhor futebol do mundo no México, enquanto nossas estudantes eram estupradas e barbarizadas em quarteis em nome da “revolução” que nunca passou de um golpe vil e imundo.
Hoje, mais de 40 anos depois, ainda nos reconstruímos das mazelas do passado. Entretanto, avançamos: o povo não aceita mais a covardia da polícia, a impunidade dos choques de ordem, a corrupção absoluta. É hora de recolher os cavalos, porque as bolas de gude de agora podem ser bem piores. Outrora garbosos e veementes, grandes personagens da política e da justiça nacional se calaram. Muitos sonhavam com um novo golpe de estado, mas o tiro saiu pela culatra: a pancada veio de onde ninguém esperava – da rua. Fugindo de helicóptero ou escondendo-se em grandes mansões, estão tomados por um sentimento que antes nem lhes passava à cabeça: medo.
Para minha sorte – e que sorte! -, no exato momento destes acontecimentos, estou a encerrar um novo livro, desta vez escrito com os amigos Luiz Alberto Couceiro, Marcus Vinicius Caldeira, João Marcelo Garcez, Valterson Botelho e Marcelo Janot. Quando começamos isso, nem de longe imaginávamos o que viria das ruas, mas o que eu posso antecipar por ora é que nosso efeito nos escritos bate em velhas opiniões formadas sobre tudo no mundo do futebol, num interessante paralelo ao que estamos vendo nas manifestações país afora. E bate firme, sem pena, mas também sem rancor. É um orgulho enorme estar junto destas pessoas e numa causa que, em muito breve, todos vocês saberão – ainda mais com o calor da voz do povo ecoando como há muito não se via.
A voz das ruas, a voz dos livros.
Ah, não posso deixar de dizer: depois de tudo isso, vai ser bem difícil para as donas Fifa e CBF livrarem-se dos “pobres” nos estádios de futebol no segundo semestre.
A água vazou.
“Vai haver uma revolução ao contrário de 64” (Cazuza, “Burguesia”, 1989)
Paulo-Roberto Andel
Panorama Tricolor
@PanoramaTri @pauloandel
O pais dá sinais de mudança, forçada pelos movimentos populares. E isso vai afetar também o futebol, pois, como você disse, fizeram um torneio para ricos e classe média. Cadê a tão falada inclusão social? Ou será que vão criar o bolsa ingresso? A FIFA suíça não se mistura com a ralé, não quer identidade com ela. Se for assim, que a FIFA vá fazer seus torneios na Europa, pois aqui somos todos Manés Garrincha, Pelés, Ronaldinhos e Ronaldões, Rivaldos, Zicos e tantos outros craques que surgiram da pobreza, alguns até morreram analfabetos, mas que ajudaram e muito a fazer dos jogos de futebol que a FIFA tanto valoriza o esporte mais popular e rentável do mundo. A FIFA vira as costas para o terceiro mundo, mas ganha fortunas com ele. Tanta injustiça e contradição não merecem o nosso respeito> Se for assim, prefiro continuar vendo as peladas de várzeas, tão futebol quando os torneios da FIFA, mas verdadeiros e democráticos.
FIFA que pariu!
Muito bom, Paulo!
Brilhante como sempre e corajoso!
SSTT4!!!!