Cinco horas da manhã. Domingo, dia de acordar mais tarde, sem despertador. A ansiedade não permite. Não consigo. Ou durmo, ou levanto. É lembrar-me de mais tarde que corre um fio frio pelo estômago.
Na janela ainda entra a escuridão do resto do mundo. Um ônibus está vazio. Não se sabe se vem ou se vai, ao certo, passa barulhento. Agora, uma moto. Os jornais voam por cima dos portões, dos muros, batem nas portarias dos prédios. O céu, sem nuvens, está parado em cima, esperando para cair no dia.
No fogão, uma água de um café para espalhar o resto do sono. Desce forte, doce, um cigarro, dois. A porta de ferro, verde, da banca, grená, com telhado, branco, sobe com força. Os pacotes dos jornais são jogados para o balcão. As manchetes voam juntas. As fotos, as charges, as letras do clássico colorem os mostruários. Compro-os. Saber do jogo é preciso, de tudo não é preciso.
A manhã, quente, corre lenta. Um café, outro, um cigarro, dois, mais um. As folhas estão espalhadas pelo tapete, pela mesa de centro, banheiro, máquina de lavar, lixo, em volta da carne, que sangra. Classificados, cinema, política, palavras cruzadas. Nada interessa. Só o clássico.
O almoço passou num flash. Um pacote de biscoitos, um refrigerante, um cigarro, dois, três, quatro. O cinzeiro transborda. Hoje é tudo ou nada. O fio frio travou a garganta e as mãos estão molhadas. O suor sai da cabeça, desce o rosto, os braços, chega às folhas dos jornais. Estico os dedos da mão. Tremem. É tudo ou nada. Revejo foto a foto.
O chuveiro está frio. A porta fica aberta para ouvir a música do velho três em um. Um vinil. Um velho e bom vinil. Legião. Uma legião passa lá embaixo. Bandeiras, camisas, sem camisas, alguns foguetes. Cantos fortes, mais altos. A rua uníssona. Somem uns, aparecem outros. Um cigarro, dois, uma carteira, vazia, amassada, no chão. Outra. Mais vinte.
A massa, a multidão. De bandeira, de boné, de camisa, sem camisa, vou junto. Entro no ritmo dos cantos, dos gritos, dos foguetes. Rua abaixo, rua acima, um, dois quarteirões, milhares de metros. O som da multidão, os cantos, com o tom baixo, que cresce, que fica forte, quase ensurdecedor, parece Bolero. Nós somos Ravel. Nós somos os artistas, a festa.
Aquele monumento rompe o chão, absoluto. De fora, ouve-se o que vem lá de dentro. De dentro, esquece-se de onde se veio, não importa para onde se vai. Nada mais interessa. A vida começou ali e vai terminar ali. Não haverá mais tarde, não haverá amanhã. Ali é o centro de tudo, a razão de ser. O cigarro, cigarros. Ardem na garganta.
O tempo pouco passa. As cadeiras vão sendo substituídas pela expectativa da multidão. Ninguém está ali para passar despercebido. Sem nós, não tem espetáculo. Um grito, gritos, aos poucos, minha voz flui anônima. De um lado ou de outro, cada um é imprescindível. Todos são únicos. Sem um, não tem dois, não tem vários, não tem massa, não tem jogo.
As cores, os cantos, o verde do campo, o céu claro escurecendo, tudo envolve a multidão. Não existe mais nada além dali. O resto do universo está congelado, parado, à espera do resultado.
O gol, o grito, o canto, minha voz, sem som, é única. Envolve, é envolvida. Os braços levantados, os punhos cerrados, como que agradecendo aquele momento, o destino, o sempre. Não tem o antes, nem o depois. Tudo é aquela vitória. Tudo é verde, é branco, é grená. O resto está parado, inerte, sem vida, não existe. É paisagem, como disse o poeta. Em tudo, só nós, só nós abraçando aquela vitória como se fosse a única razão de ser.
Panorama Tricolor
@PanoramaTri @MauroJacome
Pré-revisão: Rosa Jácome
Foto: http://globoesporte.com
http://www.editoramultifoco.com.br/literatura-loja-detalhe.php?idLivro=1184&idProduto=1216
parabens maurao, mas um excelente texto…
Belíssima crônica Mauro!
Que o nosso Flu vença e finalmente, possamos iniciar uma série de vitórias nesta reta final.
Nossa torcida não merece tanto sofrimento.i
Andel: 10
Bonita crônica, amigo Mauro!
Que vençamos logo mais. Essa torcida espetacular não merece
um novo rebaixamento.
ST4