A arte precisa não ser o óbvio, pois este está dito a todo momento.
Dias antes da despedida de Fred do Fluminense, algoritmos puseram a meus ouvidos uma conhecida canção da banda britânica “The La’s”, chamada “There she goes”. Fruto da periferia de Liverpool e de uma juventude que borbulhava à época, a banda foi tão pouco óbvia que se formou em 1983, lançou seu único álbum sete anos depois e em pouco tempo se desfez.
Viajar de avião é tudo aquilo que um bom neurótico obsessivo mais teme. O controle das vidas de tantos desconhecidos e ao mesmo tempo unidos pela vulnerabilidade está nas mãos de alguém que emerge como herói. Curiosamente, em um avião laranja, de uma companhia sugestivamente chamada de Gol. Haveria de se escutar um bálsamo no cruzar dos céus pra que as turbulências não deslocassem do assento as vísceras e o desespero de tantos.
No sentido ao Centro-Oeste, deixando o estado do Maranhão, o céu fez-se laranja. Há quem diga que o imponderável vem nas coincidências, e vivia ali a dez mil metros a sensação simbólica de chegar a Laranjeiras. Emoções sempre estão envolvidas: nenhuma aterrissagem é suave na capital do Brasil, em que – coincidência ou não – há sempre uma nuvem carregada, seja simbolicamente ou fisicamente.
E haveria de se escutar um bálsamo. Na aleatoriedade de um playlist, vem novamente “There she goes”.
Fluminense é história. Laranjeiras também o é. Música não vem sem uma boa crônica por trás. “There she goes” de maneira muito inteligente e sutil fala da relação de um jovem com o uso de analgésicos. De maneira abusiva, é verdade, para suportar o quão maçante era o cotidiano de um proletário.
E à medida que o avião laranja, cuja guerra de rasgar os ares é capitaneada por alguém vestido de branco, fazia seu único e encantador contorno na paisagem do Rio de Janeiro, eu via tudo menos a pista de Santos Dumont.
Via o mar, é claro, mas procurava do meu lado a imponência de Laranjeiras. Ainda que apagados os seus refletores, imaginei tê-la visto. Senti o bálsamo. Senti o mesmo que o eu-lírico da canção sentia ao usar os aos opioides acarinharem-no diante do pequeno dia-a-dia.
O Fluminense em campo é a terra do nunca de cada um. É o bálsamo que trata os corações dos tricolores cujo rosto é feito de marcas do tempo. É o colo acolhedor para a criança que mora nos idosos de 80, nos adultos de 45 e nos jovens de 20. É a festa animada que cada adolescente deseja.
Catete, Copacabana, Laranjeiras, Centro. Pisei o chão simples, comi os sanduíches rústicos e vivi o Rio por dois dias, sem deixar de olhar ao lado e doer o coração pela fome e fragilidade de quem ali estava. Vi o azul esverdeado de um mar tomar continuum ao verde, branco e grená da faixa que dizia no rastro de um avião: obrigado, Fred.
O futebol é o alento à alma machucada pelo que vemos todos os dias e o parquinho de diversões pra nosso eu de 10 anos.
A arquibancada do Maracanã em 09 de Julho de 2022 foi assim. Que bom fosse mais e mais vezes. É preciso que as arenas jamais tirem a irreverência deste jogo como uma bola batida em um campinho.
O capitão desceu a escadaria de nuvens, fez tremer a terra ao entrar e foi-se pelo túnel da vida. E então, “There she goes” faz sentido. Podemos trocar o “she” por “he”.
Lá se vai Fred. Assim como o analgésico que corria as veias do eu-lírico trata as feridas como nada igual pode fazer, a obra dele no Fluminense ninguém jamais poderá fazer tal qual, pois trajetórias são únicas e singulares.
There he goes. A sonoridade do verbo diz tudo, de uma língua pra outra.
There he goes. 199 vezes.
A página vira. O ídolo dedica o capítulo aos que reverencia. O som. A pausa. A história continua.
Saudações tricolores.