Sobre hoje à noite (por Paulo-Roberto Andel)

Em memória de Ézio Leal de Moraes Filho e homenagem a Álvaro Souza.

ézio 1995

Para os mais jovens da nossa torcida, o jogo de logo mais é a pedra no sapato. De vinte anos para cá, o Vasco devolveu com juros todas as mazelas que o Fluminense lhe impôs nas duas décadas anteriores. Vi os dois lados da moeda. Continuo sempre acreditando. Que venha o grande clássico.

Curiosamente, hoje não penso nos grandes jogos que vi entre Laranjeiras e São Januário. Dos meus preferidos, já escrevi várias vezes. O que me move para o Maracanã logo mais tem outro sentido.

Temos passado uma época de dificuldades desde o ano passado: o lote de trapalhadas, o quase rebaixamento (salvo pelo gongo André Santos–Heverton), o início claudicante de 2014 e a escassez de reforços para o quadro de titulares compõem um duro momento para os torcedores do Fluminense.

O que me fez voltar no tempo foi outro período difícil, mas menos doloroso – intervalo entre a última conquista dos anos 80 e o imortal gol de barriga, quase dez anos sem conquistas. Foi um tempo em que o Flu se desfez de grandes jogadores e quase sempre optou por times humílimos, baratos, sem badalação. Vivemos então uma era de dificuldades quase inédita na história do clube – a ausência de taças só foi maior entre 1924 e 1936.

Eu acabava da sair da juventude de um torcedor feliz e começava a encarar os dissabores da vida adulta: a pressão por um (dificílimo) emprego, pelo diploma, a necessidade de auxiliar economicamente a família, um país ainda em frangalhos pós-ditadura, a inflação ensurdecedora, o começo da intensificação da violência no Rio e o Fluminense… batia na trave. Poderia ter sido campeão brasileiro em 1988 e 1991, foi garfado na final do Carioca deste mesmo ano, teve participações modestas em outras competições. Uma época de transições e de muita paciência.

Ainda que a TV não fosse a dona do futebol como é hoje, o fato é que o Fluminense voltou para seu lar: retornou a ser mandante nas Laranjeiras. Naquele tempo, isso me irritava porque nasci tendo o Maracanã como minha casa de jogos. Mas não há como deixar de curtir cenas divertidas de ver o time fazendo do nosso modesto – mas elegantíssimo – estádio um verdadeiro alçapão, ajudando muitas vezes a um também modesto elenco conseguir importantes vitórias.

Eram tempos de ataques folclóricos como João Carlos, Hélio (o pai do Bernardo do Vasco) e Rinaldo (que cobrou uma falta quando PELÉ se preparava para o evento, no amistoso que celebrava seus 50 anos de idade). Ou de nomes como Dacroce, Dago, Carlos André, Zanata, Júlio Alves, o irreverente Zanata, Macula, Marcelo Gomes, Luiz Marcelo, Mazola, Paulo Apito. Ou o zagueiro Souza “Shortão” (apresentou-se para o primeiro treino e não havia um calção de seu tamanho). O mitológico lateral Carlinhos Itaberá (que, certa vez, convencido de que a torcida o considerava um craque, tomou satisfações com a mesma por tê-lo vaiado depois do décimo cruzamento errado numa partida). Quem se lembra de Jerry? Ou o africano Benji? Jefferson, goleiro de alto nível, mas baixinho. O meia venezuelano Maldonado, que fez o primeiro gol de seu país na história contra a seleção brasileira e imediatamente desembarcou em Álvaro Chaves. E Ribamar, declarado o coordenador das jogadas do time do treinador Edinho? Alaércio, Chiquinho, Pires e Dudu…

Craque mesmo era Bobô, uma pena que tenha durado pouco – jogou muito ao lado de Renato “Moleza” (ex-América), um jogadoraço que na verdade se chama Laércio. Tivemos também o Elói, mas já veterano e de participação efêmera. O inesquecível Super-Ézio, com vários parceiros de ataque e Wagner (ex-América) na dupla ideal. E sem apagar o passado, marcado inclusive por graves problemas, Ricardo Pinto teve grandes momentos com a camisa 1 do Fluminense – infelizmente atrapalhou-se e quase pagou caro por isso.

Foram dias de luta com dificuldade e humildade. A tungada Copa do Brasil de 1992, com o repugnante pênalti marcado por José Aparecido de Oliveira no final da decisão. Mais uma final perdida para o Vasco, conturbada, em 1993 – depois, novo revés no 0 x 2 de 1994 que assegurou aos vascaínos o tricampeonato estadual. Mas então veio 1995 e tudo mudou para sempre: primeiro, por causa do maior título de todos os tempos, por uma expectativa de reerguimento no cenário nacional (ferida na semifinal contra o Santos naquele mesmo ano) e, a seguir, pelos anos de chumbo contra o Flu, onde quase fechamos as portas. Com a virada do século, aos poucos o Tricolor reergueu-se, voltou a conquistar grandes títulos, também experimentou dissabores e, quando tudo levava a crer que a decolagem a partir de 2010 seria definitiva, veio o período atual.

Aquela década perdida entre os anos 80-90 teve bons momentos e lembranças sim. Claro que ninguém quer ficar dez anos sem ser campeão, mas até nisso o Fluminense soube inovar: não foi um mero figurante nos campeonatos; disputou-os e quase venceu vários. Em momentos de euforia, a torcida lotava o Maracanã. Havia mais povão, mais popularidade, mais simplicidade, longe dessa coisa enfadonha de jogadores superstars que mostram o dedão para a primeira crítica – ou “não precisam provar nada para ninguém”. A torcida do Fluminense vivia a dor de anos sem conquistas, mas não esmorecia e se fazia una: vídeos da época na internet mostram o ecoar de “Nense” em qualquer estádio.

Para mim, é emblemático demais que Ézio tenha feito seu último jogo com a camisa do Fluminense no inesquecível Fla-Flu do gol de barriga. Ele era a imagem do Fluminense sereno, vibrante, guerreiro, sabedor de suas limitações, mas sempre pronto a superá-las. Um rapaz sorridente, educado, sempre educado com torcedores e jornalistas (mesmo que estes fizessem perguntas estapafúrdias). Quando o centroavante super-herói abriu seu grande sorriso da vitória na maior final da história, ali estava o escudo de um Fluminense que já não existe mais – hoje, é raro ver as grandes estrelas andando pelas ruas normalmente, como humanos que são; tempos do espetáculo fora dos gramados, às vezes dentro. Ézio será ídolo para sempre, o que nem todos entendem.

O Flu de agora tem incríveis disputas internas, ódios, rancores, obsessões, sentimentos putrefatos que não condizem com o pai do futebol brasileiro. Há muito mais dinheiro em jogo explicando acertos e erros – ou a força da grana que ergue e destroi coisas belas. Muitos apontam – com razão – que precisamos de uma renovação de jogadores.

Creio que seja mais do que isso. Na verdade, uma retomada de espírito.

Aquele momento contagiante das conquistas recentes, do Time de Guerreiros também.

E o do espírito da simplicidade, do respeito, a lida proletária tal como também era naqueles anos sem título, onde o torcedor podia até sair do estádio sem um caneco, mas nunca sem ter aplaudido a dignidade – e por isso mesmo, era menos campeão, mas bem mais unido e até feliz.

Era o que eu queria ver logo mais, mesmo que seja um sonho de jovem incompatível com os dias atuais. Quem sabe o nosso Ézio não passeia pelo gramado?

“eis que vieste bela
para guarnecer fronteiras
fazer âmbar d’alma
e alimentar nossa poesia:
congelemos o inferno
e façamos da tua estampa
nossa guardiã de alegria”

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem: google

1 Comments

  1. Caro Paulo,

    pelas suas memórias, creio que seja um pouquinho mais velho que eu, coisa de 3 anos. Agora, confesso que sofri uma amnésia com relação aos 90. O trauma apagou da memória e não consigo dizer o que aconteceu naquela época. Sei, contudo, o que senti: pensei que nosso clube ia acabar e sofri. Se não acabou o Flu, foi porque tinha gente como você e eu gritando Nense na arquibancada. Bravo para nós também! Pena que tem pouca gente dirigindo nosso clube com o mesmo espírito hoje…

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