No clássico livro da literatura húngara, escrito em 1907 e leitura obrigatória para os então adolescentes da década de 1970, hoje mais do que cinquentões, o escritor Ferenc Molnar, “Os Meninos da Rua Paulo (A Pál utcai fiúk)”, traduzido para diversas línguas, se desenvolve, a partir da guerra psicológica de grupos de adolescentes de Budapeste, na disputa por um espaço de um pequeno terreno onde podiam brincar, praticar esportes, e aquela batalha diária tem seus sonhos rompidos pelo trágico fim do jovem, Nemecsek, um dos mais puros e pela ocupação do terreno por uma construtora, como se tais fatos representassem o fim do encanto da juventude daqueles jovens.
O mesmo sentimento de perda, de rompimento de meus estatutos de infância e dos meus laços com minha juventude e até das minhas raízes com o futebol, me veio recentemente ao passar em frente a um terreno no Moneró na Ilha do Governador, onde vivi desde a minha infância, e onde vi com muita surpresa, sendo erguido um prédio no local onde abrigava a famosa “Quadra do seu Nelson”.
Nelson Coutinho, que dava nome à quadra, era um então jovem baiano com uma farta cabeleira frontal, pele bronzeada pelo sol, que cultivava, alternada seus cachos loiros, com uma calvície acentuada na parte superior da nuca e com olhos cor de esmeralda clara. Teve a visão e o carinho de construir uma quadra de futebol para seus filhos, se tornando, assim, um pai para uma geração de garotos, adolescentes de todas as idades.
A quadra, não posso precisar a data, mas certamente foi construída em meados da década de 1970, pois, me lembro coincidir com a criação da Máquina Tricolor de Francisco Horta e onde nossos atletas e jogadas, eram repercutidos em jogadas, como o elástico de Rivelino e as cabeçadas para o chão de Doval e os dribles nas laterais do PC Caju, apesar do anfitrião vascaíno.
Em uma construção simples de piso cimentado, com cerca de 12 metros de frente e 15 metros de fundos, com acesso pela Rua Domingos Segreto no Moneró, sem qualquer estratégia de atração dos jovens, mas simplesmente montando essa “armadilha” esportiva de lazer, transformou aquele espaço em um ponto de encontro de formação de amizades, de caráter de muitas gerações naquele pequeno enclave da Ilha, onde além do futebol, falávamos de nossos times, comentávamos a última “mulher pelada” publicada na revista Ele & Ela, e organizávamos as festinhas que iriamos “penetrar”.
Dono de uma gráfica grandiosa na ocasião, e casado com a também simpática Dona Miriam, uma linda morena (com todo respeito) que ficava em uma piscina ao fundo da quadra em nível bem abaixo, com acesso por uma escada ao fundo da quadra. Todos nós respeitávamos aquele convívio de espaços, até porque os mais chegados, como eu, de vez em quando éramos convidados para curtir aquela piscina que parecia um oásis no contraste com o calor que fumegava do piso da quadra, que não era coberta, e que porem não nos incomodava, pois, como répteis, desenvolvemos uma couraça no solado de nossos pés que não nos requeria sequer o uso de kichutes, congas ou tênis para as partidas.
Seu Nelson, com a atitude do patriarca do grupo de garotos, teve seus filhos, André, Xandinho e Andrea, mesmo mais novos, sendo adotados como amigos da garotada do bairro, que vinham dos diversos cantos do chamado Moneró e “raves” distintas, até porque quem seria louco de não ter o privilégio de jogar na “Quadra do Seu Nelson”.
As regras das partidas, eram bastantes simples e surgiam da naturalidade e não eram questionadas: a bola não saía nas laterais e, portanto, as paredes eram elementos de dribles, de técnica própria e passe. A escalação era, 3 jogadores de cada lado nalinha mais o goleiro e cada partida era finalizada ao chegar o placar de 6 gols, sendo também finalizada caso um time conseguisse colocar 3 gols de vantagem inicial sem o outro marcar. O time que ganhasse continuava em campo. Do lado de fora, convivendo com a lateral, ficavam os “times de fora” aguardando. Muitas vezes existiam de 3 a 4 times e convivendo nesta lateral do campo, porém sem se sentar, para não atrapalhar a quadra e os dribles.
A bola normalmente era leve, tipo “Dente de Leite” que muitas vezes furava no próprio alambrado que circundava a quadra ou na boca de um “maldito” pastor alemão da casa ao lado, onde moravam, Herlander, Sérgio (Rato) e a Márcia, que apesar dos elevados alambrados vez por outra lá caía.
A principal regra, que demonstrava uma certa ética do convívio, era o exercício de saber “falar grosso”, e se impor, já que a bola não podia ser chutada muito forte! Isso mesmo sem qualquer recurso de VAR ou dinamômetro, existia um conceito de que o gol tinha que ser com bola colocada ou “chute normal”, senão, assim não fosse o grito era: “Bomba, Bomba”! E as discussões eram intermináveis anulando ou validando o gol. Aliás, naquela arena os principais dribles eram os lençóis ou os chamados “ovinhos” onde o maior especialista era o Ary (Macaco), pilotava uma moto ensurdecedora e depois virou piloto de Boeing.
A quadra, por ser pequena e com paredes, fazia com que tivéssemos que desenvolver uma boa técnica de passes, dribles, e especialmente a figura do pivô. O goleiro lançava a bola com a mão e você escorava para traz ou até cabeceava direto, já que o gol dentro da área só podia ser feito de cabeça. O tiro de canto, já que a bola só saía na linha de fundo, era feito com a mão e a rapidez e o deslocamento do atacante em relação ao goleiro no primeiro pau era uma técnica mortal e sagaz adaptada pelos atacantes mortais.
Ao fundo da quadra, em uma quina junto ao alambrado que dava para a piscina, havia uma bica onde ao fim de cada partida a água era bebida direto com o uso da mão do abastecimento da rua, atestando a qualidade histórica da água da Cedae, pois nunca se soube de alguém com dor de barriga ou doente por beber daquela água, muito pelo contrário, muitos como eu até ficavam gordinhos com aquele energético vindo de cano de ferro galvanizado com forte sabor de cloro e frescor ferruginoso, digno das melhores bebidas servidas em nosso Caribe que era a Praia do Dendê, isso confirmando com o melhor ditado do passado: “de que, o que não mata engorda”.
Não existia naquela época bullying, aliás, sequer sabíamos o que era isso, até porque o mais próximo dessa expressão era a búlica dos jogos de bola de gude. Não havia classe social, ricos, pobres e porteiros do entorno se engalfinhavam com o mesmo status e procedência, por suas vagas em partidas que nas férias aconteciam muito cedo a ponto de muitas vezes acordarmos Seu Nelson e Dona Miriam. Em períodos escolares começavam e iam até a noite, pois, todos como morcegos, desenvolvemos visão noturna para poder jogar! Aliás, até nisso Seu Nelson foi sábio, pois nunca iluminou com refletores a quadra, pois sabia que se assim o fizesse não voltaríamos para casa, até porque quando já não havia mais pessoas para formar dois times, desenvolvemos um novo tipo de esporte que chamávamos de “gol a gol”, onde cada lado, isolado ou em dupla, sem poder colocar a mão ou cruzar o meio campo, chutava de qualquer ponto de seu campo, como em uma disputa de posicionamento típico de Roland Garros e de aferição de chute e de proteção ao gol.
Com o tempo, o único esporte que passou a ser permitido, não muito com a simpatia do seu Nelson, foi o vôlei, com a instalação de uma rede, na ocasião turbinado pela onda criada da geração de ouro, de Bernard e eternizada pelo saque da jornada nas estrelas. Pelo seu Nelson o segundo esporte seria somente a “purrinha” que ele nos ensinou a jogar ou o chamado “bafo-bafo” com figurinhas.
Aqueles que ali jogavam tinham todos a sua identidade transformada em apelidos que são lembrados até hoje e surgiam em categorias. Havia principalmente nomes de animais como Galo (aliás, o maior artilheiro e lenda do futebol do bairro), tinha também: toupeira, ganso, garça, pato, pinto, cachorro, macaco, girafa, esquilo, elefante, cavalo, rato, camarão, mosquito, jararaca, grilo, coelho, muçum, cambaxirra, passarinho, tubarão, anu, sapo e até o porquinho da índia.
As origens geográficas também definiam nomes também, como: português, pará, russo, índio, caxias, baiano, ceará, gaúcho, paraíba entre outros.
Alguns traziam seus apelidos já vinham de casa como: Edinho, Zé, Nino, Mando, Duda, Gonçalo, Juninho, Serginho, Frazão, Chico, Zé Maria, Souza, Tony, Bila, Priore, Leo, Julião, Peregrino, Tozé, Cabral, Carapiá, Felisberto, Juca e Pop. Os personagens dos gibis também tinham sua presença: Batman, Sereia, Esqualidus, Gancho, Bambam, Fantomas e PiuPiu.
É lógico que atributos que se colocavam também geravam apelidos como peneira (o rei dos furos), meleca, gordo, quatro olhos, zumbi, moleza, canhota, caolha, china, nenê, banha, boca, PQP, jama. ventania, vermelho, azeitona, ferrugem, careca, bigode, piaú, perna, prego, cabeça, cheiroso, “roque roque”, bundinha, coalhada, barracão, cachinho, bom cabelo, jujuba, comédia, coquinho, maluco, graúdo, miúdo, bombom (Eron), chuchu e até tijolo.
A participação feminina era pequena, mas existia e a maioria se fazia através das irmãs dos membros do grupo que frequentavam a quadra. Além da bela Vitória, irmã do Marcelo que se fingia de “ceguinho “, tínhamos também a bela dupla de irmãs do Zé Manoel, Lúcia e Fátima, as irmãs do Nino: Pina e Consolata, a irmã do Herlander, Márcia que casou com o Mando, a Tutu, irmã do Pará e do Maza, a Marcia irmã do Cabral, a Mônica irmã de Marquinhos e Marcelo (cheiroso), até a Renata que morava em frente a quadra, além claro da bela Mariza com quem ainda me encontro sempre.
Nesse convívio com a molecada existiam muitos adultos, além do Seu Nelson, que participavam conosco, todos os mais “coroas” eram em sinal de respeito, identificados com o “Seu” a frente como: Seu Manel, Seu Carapiá, Seu Aloisio (juiz de futebol), Seu Waldir, Seu Blener, Seu Jaime e até um mais jovem chamado de “Seu Moço “.
Aliás, a poucos era permitido o uso de nomes como só irmãos Marcos e Manel Alberto, Anisio, Serginho, Edson, Antonio, Jorge, Marcelo, Axel, Marcio, João, Denilson, Miguel, Evaristo, Milton, Mauro, Pedro, Ricardo, Gladimir, Waldir, Wladimir e Cláudio.
Sempre lembrava das figuras típicas icônicas, como um Pasteleiro, que com um amplo chapéu de palha, em forma de pastel abandonava sua venda e lá parava e os eternos mascotes “nheco-nheco” que eram dois irmãos gêmeos univitelinos, Beto e Ugo, com uma voz bastante fanhosa, um torcendo pelo Flu e outro pelo Fla, como se na duplicação no útero do zigoto original que o Fla-Flu . já estivesse presente.
Em momentos festivos, muitas vezes eram organizados os chamados “Times Contra”, onde equipes vindas de Olaria, de um amigo do Seu Nelson e jogávamos com camisas em categorias adultos e mais jovens, e o espírito de união crescia, pois com a torcida, jogávamos como se fosse uma disputa entre países. Ali certamente tomei a primeira latinha de cerveja skol.
Aliás, naquele nicho adolescente todos conviviam harmoniosamente e não havia conflitos gerados por esses avocativos, ou racismo, homofobia (todos se consideravam machos aliás). Às vezes a porrada estancava pela disputa no futebol e pela pancada firme, porém brigas e palavrões eram monitorados por um tribunal informal presidido por Seu Nelson que aplicava suspensões temporárias.
Tenho muita saudade do Seu Nelson. Sua ida precoce me tocou muito, pois ele era um homem adorado e admirado por nossa geração até porque cuidava de todos nós. Quando meu pai morreu, me lembro do abraço firme que ele me deu e senti os braços do meu pai, seus olhos claros brilharam como o do meu pai. A cada natal eu ia na casa dele e não só para mim ele tinha sempre algo guardado na árvore de natal que ficava no fundo de sua casa, em um quintal coberto com telhas giroflex, aliás como tinha para todos que iam lhe visitar nesse dia em uma romaria natalina, daqueles garotos da quadra.
A cada vitória profissional que tinha em minha vida eu sabia que enchia o Seu Nelson de orgulho, pois fui um dos frutos daquele ambiente que ele criou, através daquela quadra para mim e para os meus amigos, que muitos ainda tenho contato e sei que lerão, e se emocionaram com essa crônica. Daquela quadra saíram Engenheiros, Médicos, Advogados, Administradores, Contadores, Vendedores, Empreiteiros, Policiais, Servidores Públicos, Garçons, Artistas, Professores, Banqueiros, Empresários de diversos ramos como: Supermercados, dos Transportes Coletivos, de Casas de Alimentação, Venda de Automóveis, hoje muitos com famílias e muitos já aposentados, alguns desempregados, felizes e até os tristes, os sóbrios e os pinguços e até os que já se foram.
Parei de jogar futebol há bastante tempo, até por uma contusão no joelho das muitas que tive naquela quadra, mas sempre que passava a frente daquele muro era como parte de minha juventude ainda estivesse lá guardada e a construção de um prédio ali, me encheu de tristeza e melancolia, e que cada vez mais vejo esse passado se afastando, como a precoce perda do meu Pai, quando eu ainda jogava naquela quadra e a recente de minha Mãe, Dona Leda, e até de ídolos da Máquina Tricolor como as recentes perdas da dupla de zaga, Assis e Silveira, que me remetem aquela época.
Como no “Os Meninos da Rua Paulo” com a trágica partida de Nemecsek que foi como a que choramos e sentimos a perda do Seu Nelson e agora, com o fim desse terreno sinto um pouco o fim de minha vida, do futebol de paixão, mas agradeço por ela ter existido e certamente o Seu Nelson que está lá no céu, e possivelmente ainda nos vendo como meninos e claro, de olho em todos nós.
Essa é a magia do futebol e do esporte que marca nossas vidas, que muitas vezes não é percebida pois é feita através de anjos como ele.
(Wagner Victer = Galo)
Panorama Tricolor
@PanoramaTri
#credibilidade
Galinha , esqueceu do Pereira ? Rs ! Fiz muito gol nessa quadra ! Kkkkk ! Muito lindo ! Show !
Parabéns galinha, uma viagem no tempo.
Foi uma época feliz. Por várias vezes quando a quadra fechava a pelada continuava na rua, de paralelepípedo mesmo.
Chegar em casa sem a tampa do dedo era normal.
Uma obra antológica, com riqueza de detalhes impressionantes , nem mesmo eu lembrava de tanta história que tem aquele cantinho, a quadra do seu Nelson e do André da quadra …
Foi muito bom relembrar em palavras com um texto simples mas sábio, que se transformam em imagens do leitor de forma única a cada personagem que ali fez história, parabéns por essa lembrança inesquecível….
Wagner Victer , quantas lembranças boas!!!. O bom da vida é isto lembrar com saudade dos momentos vividos, das pessoas que compartilharam desses momentos e acima de tudo agradecer a Deus por ter nos cercado de tantas pessoas maravilhosas e que deixaram tanto ensinamentos. Somos de uma geração que soube viver sem preconceitos e aproveitamos bem o que vida ofereceu.
Fátima (Tutu – irmã do Mazza e do Pará e também do Nilsinho )
Wagner, você, como sempre, traduziu muito bem em palavras um sentimento que mistura saudade, amizade, nostalgia, felicidade e muitos outros que não consigo definir agora. Me emocionou e me remeteu a um tempo muito especial que nunca esquecei. Como você pode lembrar de tantos detalhes? Eu os lembrei apenas lendo e relendo suas palavras, rindo sozinho aqui no meu apartamento em São Paulo.
Vou mostrar para todo mundo por aqui… muitos paulistas já me ouviram contar algumas histórias dessa…
Excelente sua narrativa,pois me fez retornar aquela época de ouro que não volta mais fomos muito felizes graças aquele nobre homem chamado Sr Nelson que teus te abençoe e te encaminhe para o lugar que tu merece, muito bom gostei muito obrigado Wagner me emocionei agora!!!
Que Deus abençoe a todos!
Que leitura agradável Wagner ! Sua estória me remeteu ao “campo do vassourinha” na rua Upiara em Bento Ribeiro de onde saiu o Gerson Andreotti para vestir a camisa do nosso tricolor e depois técnico de algumas equipes do nosso Estado. Obrigado por partilhar suas memórias que, embora 10 anos mais jovem, sejam muito semelhantes às minhas na década de 60, torcendo pelos gols do Amoroso, e de todos que vestiram nossa linda camisa.
Adorei. Sem esquecer tb do meu irmão Paulo Louzada que foi tb um grande frequentador dessa quadra.
Sr. Nelson para sempre em nossos corações….
Caro Victer, também joguei contigo no time de engenharia da Petrobras. Os gols eram os projetos que defendíamos e sua implantação era o final do campeonato.
Parabéns por sua memória fantástica, parabéns pelo seu talento de cronista (muito bom de ler), parabéns pelas bandeiras que defende, pelas realizações e pela simpatia e amizade que distribui fartamente.
Não tem como não nos emocionarmos.
Suas lembranças transcritas nessa pequena história, ou melhor dizendo: grande história de tantos capítulos, ocorridas nesse importante cenário de nossas vidas, trouxeram à tona em minha mente, nomes, apelidos, fatos e partes de nossa história até então já esquecidos por mim.
Te agradeço, velho amigo, por esse momento que agora vivo, curto e me emociono, por tantas boas lembranças e amizades que tive, graças à sua boa memória e disposição em compartilhá-las…
Meu amigo Galo.
Entrei em uma daquelas famosas maquinas do tempo e fui transportado pra quadra do Seu Nelson e depois para o campinho, bem em frente a casa do Batman.
Com olhar turvo, nao pela idade que chega, mas pela emoçao, concordo com vc. A simplicidade é um tesouro e o q carregamos no coraçao, como os amigos de sempre, é um tesouro inestimável. Obrigado meu amigo. Muito obrigado.
Wagner, me emocionei demais com essa crônica, Lembrei da rua Dulce na Tijuca, onde nós depois das aulas íamos jogar uma peladinha no asfalto para relaxar das aulas que tínhamos tido antes. Era fantástico.
PS. Os meninos da Rua Paulo também li sob pedido da nossa professora de português