Quando éramos três (por Paulo-Roberto Andel)

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Em meus tempos de garoto, eu adorava chegar mais cedo no Maracanã. Fiz isso muitas vezes com meu pai e, mais tarde, sozinho. Não havia uma razão específica: as preliminares de juniores começavam às 15 horas. Uma hora antes, ou mais, lá estávamos. Meu pai sempre gostou de chegar com antecedência nos lugares. Sentávamos nos bancos de praça em volta do estádio. Ou ficávamos debaixo de uma árvore de boa sombra.

Era um encantamento para mim, principalmente na subida da rampa e ao entrar no tunelzinho de acesso às arquibancadas – experiência fascinante para qualquer criança. Não conversávamos muito, uma pena – ele falava pouco. Invariavelmente eu ganhava um cachorro quente Geneal e um refrigerante de copo. Os bares eram bem simples, vendia-se também pacotinhos de batata frita e pele de porco. Na entrada do estádio, amendoim torrado e laranja – a descascada era mais cara. Uma nuvem de pó de arroz, todos ficavam esbranquiçados, os pequenininhos tinham medo do Careca e a beleza era indescritível.

Depois das partidas, pegávamos o 434 até Copacabana, Siqueira Campos. Meu pai comprava uma pizza Bella Blu e comíamos em casa, numa mesinha de mármore – talvez a única valiosa na pequena casa. Minha mãe adorava. Éramos nós três e nossos pequenos momentos divertidos.

Meu pai era silencioso e crítico. Queria jogadores melhores no Fluminense. Reclamava da mediocridade de alguns. Era o ano de 1979. O Flu se ressentia do fim da Máquina, muitos jogadores eram jovens e não havia expectativa de um título estadual à vista – ninguém falava de campeonato brasileiro, Libertadores, não havia uma obsessão infinita com outras competições porque o campeonato carioca (na verdade, do Estado) era bom e disputado demais. Os times eram fortíssimos, os pequenos muitas vezes surpreendiam e jogar um clássico com cem mil torcedores era lugar comum. Hoje entendo meu pai: ele viu Telê, Didi, Carlos Alberto Torres, Gérson, Rivelino, Paulo Cezar Caju, Mário Sérgio. Tinha direito de ralhar, mas nada de restrito comportamento fundamentalista que se vê nas redes sociais, onde frases flácidas espumam baba ácida.

Quando comecei a ir semanalmente aos jogos, lembro que queria ver o Fluminense ganhar as partidas e ser campeão. No entanto, não era só isso que me impulsionava a ser um torcedor fanático, daqueles que liam notícias de jornal e ouviam programas esportivos todo dia: eu gostava da camisa do Fluminense, do escudo, da torcida, do silêncio das arquibancadas vazias até que fossem ocupadas. Das bandeiras, que ficavam preparadas para entrar pelo primeiro túnel de acesso ao lado da tribuna de honra e vinham em linha, sendo saudadas por todo mundo sem distinção. Dos sambas-enredo puxados pela Young Flu. Eu gostava de tudo que cercava o Fluminense. E nunca via times adversários como inimigos: o colorido dos clássicos era maravilhoso.

Mais tarde, os garotos do time se firmaram e moldaram o grande campeão de 1980. A seguir, meu pai começou a ir menos aos jogos por mais de uma razão e passei a ser um jovem torcedor solitário, exceto nos do Torneio dos Campeões de 1982, vencido pelo América – um verdadeiro campeonato brasileiro mal-registrado pela grande imprensa hoje. Meus amigos da escola levavam uma bola de borracha, os chinelos eram as traves, fazíamos animadas partidas na geral e ninguém ligava – certa vez, um PM até buscou a bola no fosso que cercava o gramado para nós. Era um Maracanã mais humilde, mais popular, mais simples. Não que não houvesse pessoas abonadas, claro, mas o grosso era dos trabalhadores de salário mínimo ou um pouco mais – mesmo na nossa elegante e charmosa torcida.

Minha mãe ficava preocupada com minha volta nos jogos à noite, mas rapidamente tive dois mentores que cuidavam de mim no Maracanã, inclusive conhecidos por ela: Seu Armando Giesta e Tia Helena. Foi um bom começo de adolescência. Alguém tomava conta de mim no ônibus; eu era um garoto responsável.

Até mesmo uma greve de torcida eu furei involuntariamente: o Flu estava em má fase, marcaram-na para protestar contra a diretoria, cheguei antes dos piqueteiros, entrei na geral. Zezé da Força Flu veio falar comigo, pediu pra eu fazer a greve no jogo seguinte, me deu um abraço, acho que foi um 0 x 0 chocho. Nunca mais o vi.

Depois disso, trinta anos voaram e agora estou aqui. De lá para cá, o Fluminense ganhou títulos fantásticos, desceu aos infernos, voltou como nunca, também voltou a ser respeitado internacionalmente. Fez rir, chorar, gritar, sofrer, amar. Viveu e fez viver. Eu era um garoto cheio de sonhos, agora sei que inevitavelmente estou mais perto do fim do que do começo, mesmo que esta mesma vida ofereça tantos recomeços – assim como esse mesmo esporte maravilhoso que faz os olhares fixarem-se nas magias do gramado em todo o mundo.

Tudo mudou: o Brasil, as pessoas, o futebol. Quem estava do meu lado disse adeus ou até breve. Outras pessoas vieram. Os times, os jogos. O que não mudou foi a minha vontade de continuar perto do Fluminense, tal como um cachorro fiel e feliz faz em casa quando está perto de seu dono até o fim e depois dele. Assim tem sido e espero que continue por um longo tempo. Claro que vencer é importante, mas quem disse que a vida se limita à vitória? Um ledo engano somente encampado em argumentos reducionistas. Vencer é bom, claro; amor é outra coisa – acima, bem acima. Não amo somente nas vitórias. Mas longe de mim causar desconforto nos que pensam na vitória como a única viabilidade da vida: trata-se de uma experiência pessoal. Há quem só viva ao vencer; prefiro estar vivo o tempo todo, sem recalques.

Agora há pouco, escrevi estas linhas porque não pude ir a Volta Redonda e ontem, tradicional dia de jogo, o Fluminense não atuou. Se você me perguntasse o que eu mais queria, era ter pego o velho 434 e entrado no velho Maracanã até passar pelo tunelzinho e encontrar aquele silêncio de muitos desertos, grandes histórias a seguir e um amor infinito, daqueles de Madredeus. O jogo era pequeno ou com pouco público? Vale vaga ou é cotidiano? Não importa. Será que as bandeiras vêm pelo primeiro acesso agora?

Eu ainda procuro por isso.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem:PRA

8 Comments

  1. Faço minhas, os elogios dos tricolores ao seu belíssimo texto.

    St

    Ronaldo Riggs

  2. Que texto, que delicadeza, que tudo, que falta de palavras, que saudade!

  3. Sensacional o texto!! Compartilho de todas essas nuances que você enumerou a respeito de Amor ao Fluminense. Minha velinha está próxima de apagar…mas enquanto estiver acesa essa Paixão não morrerá no meu peito. Me emocionei com as suas lembranças. saudações Tricolores.

  4. Só tenho uma coisa a dizer: te invejo por ter vivido isso tudo! Sou do ES e fui uma única vez ao Maraca, na final da Libertadores! Não vencemos, vc bem sabe?! Mas, sinceramente, aquilo pra mim pouco importou! fiquei nas arquibancadas azuis, antiga geral, abaixo da cabines de rádio e televisão e confesso que olhava mais para a torcida acima de mim do que para o campo! Foi mágico, lindo! Depois vendo o VT do jogo não acreditei que eu fiz parte daquela festa linda! Ser tricolor é um benção de Deus!

  5. caro Paulo,

    nao joguei bola na geral, nao fui ‘batizado’ pelo eterno Guilhermino, nao vi os vendedores-astronautas, nao conheci alguns torcedores eternos de nosso Fluminense, nem mesmo pude subir a rampa levado por uma pessoa querida – mas pude sentir saudade de tudo isto ao ler teu texto.

    obrigado – e nunca desista.

    ST

  6. Grande Andel, como você é hábil com suas palavras. Ler esse texto me fez também voltar no tempo, no Maraca de antes, não o de agora, apesar de não conhecê-lo ainda, pois sou um carioca erradicado em Natal. Tenho muito orgulho de torcer pelo nosso FLU, principalmente quando tenho o privilégio de torcer para o mesmo time de um grande escritor como você. Tenho quase todos os seus livros, faltando apenas o “Pagar o quê?”. Muito obrigado, Andel. Quando em for a um jogo, levarei os livros para vc…

  7. Meu camarada, que texto sensacional! Moro no Espirito Santo, portanto fui poucas vezes ao Maracanã. Mas teve uma vez que foi especial. Jogo Flu x Boca. Fui de ônibus de excursão do ES. Cheguei muito cedo no Maracanã, mas não me importei, fiquei lá, nos arredores do estádios, aguardando meu irmao que mora em Seropedica-RJ chegar, mas fiquei curtindo aquele momento que mais tarde se revelaria histórico.

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