Tudo passa tão rápido que lá se vão trocentos anos num estalar de dedos. Outro dia, conversando com Gonzalez e Couceiro, ficamos horas e horas lembrando de coisas de trinta e cinco anos atrás. Caideira falava dos sambas de arquibancada, entoados pela torcida inteira, uníssona. E Rogerio Skylab teve a chance de ver Castilho em ação. Acabou de sair um livro sobre Rivellino; lá estão nossas histórias que remetem a quarenta primaveras antes.
Há pouco recordei de Paulo Cézar Caju, um dos maiores da história. Quando jogou no Fluminense, eu era tão pequenino que me jogavam para cima a cada gol nosso. Cheguei a vê-lo melhor em outros grandes times brasileiros. Um monstro. Craque de doer. Se jogasse hoje, só poderia estar um dos três times: Barcelona, Real Madrid ou Paris Saint-Germain. Com a camisa 10, lógico.
Pois bem: um domingo de ouro há quase cinco anos. O Fluminense precisava vencer o Guarani para voltar a ser campeão brasileiro depois de 26 anos. Engenhão (agora Niltão) lotado; como se sabe, na hora da decisão a Revista do Rádio é jogada para cima e todo mundo aparece.
Aconteceu que o Leo Prazeres precisava entregar ingressos para um amigo e não entramos no estádio imediatamente. Uma hora de espera. Turbilhões de gentes para todo lado – e a quebra de um recorde mundial: nunca se viu tantos torcedores desconhecendo os pontos cardeais por completo – ninguém sabia de Norte, Sul, Leste e Oeste.
A cinco minutos do início da partida, lá vinha o Leo esbaforido, debaixo de um calor desértico. Chegava a hora de entrar e navegar pelo mar da emoção. Num súbito, espiei o outro lado. Perto de um poste, em frente ao acesso, um senhor negro, barbas brancas, boné e óculos escuros, parado com toda a calma do mundo. Um jeitão de popstar blasé. Talvez um dublê involuntário de Sonny Rollins, o imortal saxofonista do jazz. Ou Ritchie Havens, o trovador dos anos 1960, falecido há pouco, como se estivesse prestes a arrebentar cantando “Freedom” em Woodstock. Sozinho, mas como se estivesse a esperar alguém que não viria. Epa!
Olhada mais atenta, mais atenta, ali estava justamente o Caju. Campeão do mundo em 1970. Um dos maiores craques da história dessa sofrida Pindorama. Um gênio.
Pensei em falar alguma coisa, agradecê-lo pelo talento que emprestou ao nosso Fluzão, ao Brasil, mas nada caberia em um minuto. Era uma decisão, momento de coisa séria. Leo chegou, avisei-o da presença do astro, ele vibrou e nos dirigimos à roleta de acesso.
Olhamos para trás e pensei: aquele homem foi um dos maiores jogadores de futebol do mundo e ali estava num misto de silêncio, serenidade e anonimato. Os torcedores retardatários passaram a correr desesperadamente, sedentos para o jogo final. Ninguém pedia autógrafo, fotos, nada. O grande enfant terrible virou um respeitável senhor discreto, que no passado foi mesmo um Rollins, um Havens dos gramados.
Cheguei a pensar em pedir uma foto, mas Caju parecia tão calmo e feliz que resolvi não incomodar. É preciso entender que uma das formas de reverenciar o gênio está no silêncio de discrição. Idolatrar um astro não precisa exigir do fã a condição de papagaio de pirata. E os deslumbrados que usam um segundo de boa fé para autopromoção?
Caju foi craque, polemista, irreverente, gênio difícil, cronista dos bons, frasista, tudo. Um conde. Na porta do antigo Engenhão, era apenas mais um torcedor à espera da tarde do tri. Todos passaram correndo em busca do título que logo viria. Eu era um passarinho. Nós dois nos encontramos numa crônica de Rubem Braga, daquelas inúmeras que melhor traduziram os bons sentimentos, a liberdade e a admiração de um garoto de muito tempo atrás diante de uma fera do Saldanha, do Zagallo e de um tempo em que o Brasil teve o melhor futebol do mundo.
Quando Emerson fez o gol e o Engenhão veio abaixo com a vitória sobre o time bugrino, então entendi o que era o presságio da entrada. Ao término da partida, ainda pudemos entrevistar a Letícia Spiller, linda, gravidíssima em plena arquibancada já esvaziada. Vários jovens leões tricolores perceberam a presença e voltaram: queriam autógrafos. A atriz atendeu a todos com simpatia e simplicidade. Depois, o Rio de Janeiro foi tomado por uma tempestade monumental.
Com o poema de Cacaso em meu peito, então senti que o resumo é de cada um.
Panorama Tricolor
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