Pais e filhos (por Eric Costa)

eric green

É inverno de 2030. A cidade é Belo Horizonte. A casa destoa da urbanização. Quase uma casa no campo.

João chega da escola. Agasalhado da cabeça aos pés, já que seu pulmão adora chiar, coloca a mochila no sofá e abraça seu pai. Seu cansado pai, que acabara de chegar de mais um plantão, retribui com todo o carinho. Beija o rosto de seu filho.

João vai tomar banho. Põe, dentre outras coisas, seu gorro do Fluminense. Depois, pega o jornal sobre a mesa e abre na parte de esportes. Os pais de João não o querem de frente a telas digitais muito cedo. Por isso, o velho calhamaço de papel é o palco das primeiras leituras do pequeno tricolor de oito anos.

O pai de João vai ao quarto. Sua esposa acabara de acordar com a voz das duas pessoas amadas. Balança seus cachos sob o olhar encantada do marido. Um beijo carinhoso acontece. João interrompe.

– PAPAI!

– Oi, meu filho.

– Papai, é verdade. O que os grandões da escola falam é verdade.

O pai se aproxima e senta ao lado do filho.

– O que eles dizem, meu pestinha?, diz o pai acariciando o cabelo encaracolado do filho.

– Eles dizem o que está escrito aqui. “Fred, o artilheiro da massa do Galo”. Ele não joga mais, mas dizem que foi um craque. Que não tinha atacante melhor. E que tiraram ele do nosso time. Dizem que ele nunca gostou do Fluminense de verdade.

O pai respira fundo.

– Filho, o papai vai ter que contar uma história…

– Mas ainda não é de noite, pai!

– Vem cá, meu filho.

Eric, beirando seus 40 anos, puxa um velho álbum de fotos na estante. Mesmo na era digital, ele e sua esposa tinham um apreço especial por guardar tudo com tradição.

– Meu filho, este aqui é seu pai. Quando ele ainda não tinha barba branca. E esse aqui é o Fred. Olha como ele está com a camisa do Fluminense.

– E você tá tão feliz na foto, papai! Você tinha muito cabelo!

Eric ri. Passa a mão nos rarefeitos cabelos e olha pro seu filho.

– Eu amava esse jogador, sabia? O Fred era meu maior ídolo. Eu vivia defendendo ele pra todo mundo que dizia que ele era ruim.

– Papai, você tem quatro fotos com ele! Ele era do Fluminense mesmo!

– Ele era, meu filhinho.

A voz embarga.

– Pai, você tá querendo chorar?

– Não. Mas vou te contar um segredo. Ele um dia me deixou muito triste. Foi no dia que ele saiu do Fluminense pro Atlético. Eu fiquei muito triste mesmo. A gente gostava muito dele. E ele também adorava jogar no Fluminense.

– Mas a gente não sai do time que a gente gosta.

– A gente não sai. Se a gente pensar só no time não. Mas o segredo eu ainda preciso te dizer: quando ele disse que ia embora, eu liguei chorando pro seu avô. Ele também chorou. Eu tinha 23 anos e ele 66.

– O vô Assis?

– O vô Assis, meu filho. Mês que vem ele vem nos visitar. Ele também estava muito triste.

– Mas se ele te deixou assim, porque você vive falando nele? Se alguém me faz chorar na escola, papai, dá vontade de nunca mais falar com ela.

– Filho, na vida, as coisas não são assim. Você ainda vai aprender muito. Assim que ele saiu, eu pensei desse mesmo jeito. Nunca mais olho pra ele, eu dizia. Rasguei fotos, tirei o nome de camisas. Xinguei de muita coisa que me arrependo. Coisas que não te quero ver falando nunca.

– Aquilo que você fala assistindo jogo, papai?

– Hahahaha. Não mata seu pai de vergonha…

Com os cachos trançando sobre a roupa, a mãe de João aparece.

– Tá vendo, Eric Costa?! Eu sabia que ele escutava seus palavrões. Se oriente não, viu?

– Amor, não me chama de Eric Costa…você sabe que há quinze anos isso é só na hora de dar bronca.

– E é o que eu tô fazendo! Palhaço de circo! Não muda nunca!

– Te amo, sabia, Ju?

– Aff…eu também te amo, seu chato.

João intervém.

– PAPAI!

– Desculpa, filho. Como dizia, não queria ver o Fred nunca mais. Era uma tristeza sem fim naqueles dias. Não queria lembrar dele, mas lembrava direto. Ele jogou quase oito anos no Fluminense, meu filho. Quase oito anos.

– Mas ele era o melhor jogador pelo que você diz e muita gente gostava dele. Por que ele foi embora?

– Filho, na época pensei muita coisa. Pensei que fosse por dinheiro. Talvez tenha um pouco disso. Mas só pensei mal dele. Não pensei no coração dele. Me arrependo de não ter pensado que ele, que nem eu e você, também fica feliz, triste ou chateado. E ele saiu muito chateado.

João franze a testa. Ares do pai. Ou da mãe, segundo a mãe.

– Chateado como?

– Joãozinho, lembra o dia que você chegou chorando da escola? Você estava triste com a Carla, a Giovanna e a Samanta. Lembra que você fazia grupo com elas desde o primeiro ano e naquele dia te falaram que tanto faz você ficar com elas ou não, mesmo com toda amizade de vocês?

– Lembro. Mudei de grupo e tudo…

– Pois é, meu filho. Você gostava muito delas. Mas elas nem te queriam ali mais de verdade. Começaram a falar pouco com você. A te deixar só. Com o tempo, pensei, li e me informei. Naquele mesmo ano, 2016, no fim dele, eu já não estava de mal com o Fred. Muita coisa chateou ele. Muita gente deixou ele triste. Deixaram ele só, às vezes. Ele nem sempre era nota dez com todo mundo, mas sofreu o que não merecia. Tinha um presidente do Flu, João, que era muito chato. Brigava com todo jogador importante da gente. Mas é história para outro dia…

– Você ainda gosta muito dele, né, papai? Já viu ele alguma vez depois que ele te deixou triste?

– Ele sempre vai ser meu ídolo, João. Sempre. Doeu muita coisa que ele fez. Mas ele vai ser sim. Ah, filhinho, eu adoraria vê-lo de novo.

– O que você ia dizer, pai?

– Eu ia dar um abraço nele, meu filho… (Eric enxuga as lágrimas) Eu iria dizer: “eu posso não concordar com muita coisa que você fez, mas muito obrigado, viu? Você me deu muita alegria, encheu meu coração de felicidade com seus gols. Conhecer você pessoalmente lá em agosto de 2013 foi um dos dias mais felizes que tive, sabia? Eu vivi sete anos maravilhosos te vendo com a camisa do meu time.” Eu ia dizer “obrigado” pra ele mil vezes, meu filho. Porque no fundo eu sempre mantive meu amor por ele. Ele sempre foi meu ídolo mesmo quando eu o xingava. Eu só fiquei com raiva e isso me fez pensar tudo errado.

– Eu também, papai! Se ele te deixou mais feliz que triste, eu também ia abraçar o Fred.

– Abraça, meu filho. E abrace todos que até mesmo já te chatearam. Quando o Fred saiu, sua mãe e eu éramos namorados ainda. Ela sempre foi esse anjo, João. E era ela quem mais dizia pra eu não guardar mágoa de ninguém. Então, meu filho, não fica com raiva, chateado ou de mal com ninguém por muito tempo, tá? Seu pai durante muitos anos foi uma pessoa assim. Isso só era ruim pra mim. O tempo passou e eu aprendi. E não quero te ver com coisa ruim nesse coraçãozinho, tá?

– Tá bom, papai!

– A vida é assim, meu filho. Nem sempre tudo do jeito que queremos. Mas tudo no final das contas acontece por um motivo. Dois anos depois, ganhamos a Libertadores. Fomos campeões do mundo meses depois. Uma das maiores felicidades do seu pai. E a primeira vez que eu levei sua mãe pra um jogo. Foi nesse dia no Maracanã que eu perguntei se ela queria casar comigo. Éramos dois médicos cansados naqueles tempos, mas muito felizes.

– Não sabia disso, papai! Que legal!

– É, meu filho. Antes, muito antes de você nascer…antes até mesmo de eu nascer tinha um escritor chamado Nelson Rodrigues lá no Rio de Janeiro. E ele, em outras palavras, dizia mais ou menos assim: “O Fluminense nasceu para ser eterno. Tudo pode viver, tudo pode morrer. Só o Fluminense não morrerá jamais”. O Fred saiu naquele dia, mas nós continuamos existindo. Ali já tínhamos 113 anos. Quantos jogadores já não saíram e continuamos vivendo? O Flu é maior que tudo isso, filho. Nunca se esqueça.

– Esqueço não! – disse João, beijando o escudo.

– Meu orgulho…

– ERIC COSTA! – chamou Júlia ao fundo.

– Oi, amor!

– Eric Costa, está na hora de a gente começar a se ajeitar!

– Verdade, amor. Filho, vamos escolher sua roupa juntos pra mais tarde. É formatura de titia Clara! Pega logo isso, João.

– A bandeira do Fluminense dobrada, papai?

– É. Sua tia Clara era do seu tamanho quando ganhamos a Libertadores. Ela assistiu o jogo pra ver tia Júlia e tio Eric na tv. Ela viu. E também se apaixonou pelo Fluminense ali. Sua mãe nem sonha, mas ela vai entrar ao som do hino do Flu. Ideia minha! Na hora, a gente abre a bandeira. Fechado?

– Fechado!

O sentimento verde, branco e grená atravessou gerações. Fred passou. A raiva se dissolveu. A mágoa – como deveria – também. Tudo passou. Só o Fluminense não passou jamais.

Depois de muito pensar: obrigado, Fred. Não é agora e quando exatamente eu não sei, mas um dia eu vou te perdoar completamente.

Minha gratidão, após muito refletir, você já tem.

Saudações tricolores.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Imagem: eco