Os Fluminenses (por Paulo-Roberto Andel)

flu vila aliança

Saudades de trinta anos atrás. Trinta e dois.

Não da campanha ou da atmosfera (ruins por sinal), mas da época em si e porque ela prometia o que todos perdemos um pouco a cada dia que passa: o futuro.

A fase não era nada boa.

Traduzindo: circo (literalmente) no gramado das Laranjeiras, quinto lugar no campeonato brasileiro, Edinho (o craque) foi embora, primeiro Fla-Flu do Carioca e levamos de 3 x 0 no primeiro tempo. Fluminense 1 x 2 Portuguesa da ilha, dois gols de Rico (tricolorzaço), a única bandeira da geral era a minha. Acredite quem quiser: o mastro era de madeira (apesar de fininha). Fluminense 0 x 3 Campo Grande. Fluminense 0 x 1 Corinthians num sábado à noite com direito ao enterro simbólico do presidente Sylvio Kelly, dando duas voltas no campo. Quando passou perto de mim, fiquei com certo medo mesmo que fosse uma simulação: eu nunca tinha visto um caixão de perto na minha vida. Infelizmente, depois disso, já vi muitos.

Mas era tudo diferente. Muito diferente.

O Fluminense estava mal, mas não tinha donos da verdade, donos do clube, donatários, dono do time, outros deslumbrados em busca da única ascensão social possível. Ou talvez até tivesse, mas não com o ímpeto de tubarão que se vê hoje em dia. O pó de arroz da arquibancada, misturado aos bandeirões, cobria tudo e dava a impressão de que ali éramos todos amigos de verdade e não uns reféns dos outros. Quer coisa melhor do que a ingenuidade de um garoto?

Falo de economizar moedas no porquinho para garantir a passagem, o ingresso de geral. Ganhar um abraço do Seu Armando na subida da rampa na arquibancada. Assistir domingo de manhã o Conversa de Arquibancada na televisão com Hamilton Bastos, as torcidas iam. O Seu Armando cobrava tudo. Zezé e Antonio falavam também. E os torcedores dos outros times, todos juntos, sem ode hoje. Depois do jogo das 17 horas, esperar até meia noite para ver a reprise na TVE.

Certa vez fomos jogar contra o Bangu. A torcida estava tão irritada que organizou uma greve em prol da melhoria do time. Vanguarda em plena ditadura. Eu era moleque ainda, tão moleque que nem parava pra pensar que não poderia ser campeão com Fanta e Paulo Lino, dentre outros: só queria ir ao Maracanã para ver o Fluminense.

O 434 dando voltas e voltas, namorando a cidade desde Copacabana, até chegar na UERJ que, um dia, seria toda minha. Comprei meu ingresso, não havia uma pessoa na fila e nem no acesso da geral. Quando entrei, percebi que tinha sido a primeira pessoa a chegar no setor e uma das primeiras no Maracanã. Não tinha visto nenhum movimento de greve do lado de fora; se houvesse, eu pararia: fui criado numa família que tinha respeito a greves.

Logo o Zezé entrou e veio conversar comigo. Nunca mais me esqueci. Sentou, disse um “tudo bem?”, perguntou onde eu morava, talvez nunca tivesse percebido que eu via vários jogos perto dele na Força Flu, o que era natural pela minha idade (depois eu veria outras dezenas na Young Flu). Então ele me explicou os objetivos da greve, eu contei que não tinha visto ninguém, ele entendeu e só pediu que, na próxima partida, eu esperasse para entrar visando não furar o movimento. Entendi, me deu um aperto de mão, “valeu, garoto!” e saiu. O jogo foi um 0 x 0 chato. E o pessoal ia me encher o saco na escola outra vez. Mas nada daquilo me importava: eu queria estar perto do Fluminense onde fosse.

O tempo correu na velocidade que lhe cabe e chegou até aqui. Não teve mais greve (quase). Logo, de mero coadjuvante, o Flu virou o protagonista dos campeonatos. Tricampeão inconteste, campeão brasileiro. A marca do time estava no sorriso e na simplicidade do herói Assis, tão vencedor e tão humilde. Depois dele, muitas histórias de amor e dor vieram. Estou aqui, com as cicatrizes e vitórias possíveis. Não mexeria em nada: por mim, tinha que ser tudo exatamente como foi.

Antigamente eu pensava que o Fluminense era um só, exceto quando alguns torcedores olhavam os mais humildes como eu com certo esnobismo, culpa de um país elitista e até hoje mal resolvido, embora em escala bem menor. Ledo engano: são muitos Fluminenses. Alguns são admiráveis; outros, poucos, deploráveis – e isso dói. O Fluminense da luta, da união, da camisa centenária, das conquistas coletivas é maravilhoso. O Fluminense de Horta, de Schwartz, de Assis, de Rubens Galaxe, de Denílson, de tantos outros, de gente que serviu ao clube e não se serviu dele é eterno. O Fluminense das picuinhas, do clientelismo político, da boquinha, dos boicotes, que joga contra si mesmo, do “quanto pior, melhor” não: é péssimo.

Se todos torcemos para o mesmo time, o mínimo que se poderia esperar era a compreensão, o respeito, a capacidade de um olhar para o outro e nele reconhecer um irmão, não um inimigo de forma doentia.

Se todos torcemos para o mesmo time, ele não deveria servir de amparo para aproveitadores dentro e fora do campo, podres poderes, podres conceitos. Em momentos difíceis como o de agora, com um time que prometia os céus e começou a despencar por motivos ora desconhecidos, ora desconfiáveis, deveria ser a hora da torcida do Fluminense estar mais unida do que nunca.

Se todos torcemos para o mesmo time, nossas vaidades pessoais, nossa sede de autoridade e poder, nossos ganhos, todos valem menos que merda diante do tamanho do Fluminense e sua história.

Jogadores, dirigentes, treinadores, todos passam. A torcida fica.

Nunca fui tão imbecil como agora, sonhando com essa possibilidade de união: basta acompanhar esta rede antissocial Facebook ou o Twitter em seus diversos grupos e tendências para testemunhar a agressividade estúpida de quem é “mais tricolor do que o outro”, “sabe mais do clube do que o outro”, “vai a mais jogos do que o outro”, tudo numa competição inútil e boçal que vai do nada ao lugar nenhum – ou gente que, como bem explicou Romário, mal pegou o ônibus e já quer sentar à janela. Pobres dos que se acham mais importantes do que os outros: qualquer doencinha e plaft! Cemitério, choros, adeus. Futebol deveria ser para unir torcidas e não dividi-las. Quem ganha com isso?

O mundo é maravilhoso. O ser humano, com suas vaidades, prepotências e ganâncias, é quem estraga tudo.

Com o que vejo e leio no campo e nos discursos mofados, poídos e cínicos, minha vontade agora é a de, trinta e dois anos depois, atender ao pedido do Zezé.

Domingo tem um jogo vazio no Maracanã, esse aí que inventaram para desviar dinheiro e nem é mais o meu.

Passar na porta, dar uma olhada, lembrar dos velhos portões e dar o fora. Maldito agosto.

Só não faço isso porque ainda não consigo: a pessoa é para o que nasce. Mas só de pensar que determinadas suposições e especulações possam ser 100% verdadeiras dá nojo. Tudo muito distante de Assis e Washington, que vão ganhar os livros e, se tudo der certo, as estátuas que merecem.

De toda forma, eu vou entrar, esperar pelo Zezé que não vai aparecer, procurar o Seu Armando em vão, ganhar o carinho imaginário da Tia Helena que também não estará lá e, dolorosamente, lembrar que todas aquelas coisas maravilhosas que vivi como um garoto torcedor do Fluminense estão inapelavelmente mortas, exceto dentro de mim e dos livros que ainda pretendo escrever. Com quase quarenta anos ininterruptos de arquibancada (geral também, sempre), creio ter conhecimento e vivência de sobra para publicá-los. Mas nada alivia saber que tudo aquilo está irreversivelmente morto.

O Fluminense respira a eternidade do poema que é. Os homens, não.

Panorama Fluminense

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem: pra/ vila aliança

4 Comments

  1. Lindo. Magnífico. O poema que eterniza as três cores só é possível pela linhagem de cronistas que têm.

    Parabéns pelo belíssimo texto!

  2. “Só não faço isso porque ainda não consigo: a pessoa é para o que nasce.” Como eu me identifico com essa sua frase, Andel! Me fez lembrar Guimarães Rosa. Compartilho do mesmo sentimento em relação aos “Fluminenses”. Sinto desânimo de explicar a pessoas que considero boas(não perco o meu tempo com as que não considero), e que dizem que o Fluminense é uma vergonha, o que é o Fluminense, e das mentiras cuidadosamente travestidas de verdades que foram lançadas sobre ele. Os “Fluminenses”…

  3. Silvio e Marvio Kelly foram dois grandes atletas, campeões brasileiros e sul americanos pelo nosso tricolor.
    Seu Armando e um símbolo da nossa torcida.
    Fred está longe de ser um ídolo, atualmente e um jogador em franca decadência.
    O Fuminense hoje e como um doente que precisa de hemodiálise , o problema e que o dono da máquina e o Celso Barros.

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  4. Desde que eu nasci
    Ti acompanhei
    Fluminense, eu sei
    Até a morte
    Contigo estarei.

    Haja o que houver
    Onde quer que eu vá
    Comigo vou levar
    As cores que herdei
    Verde, branco e grená.

    Não nego que, com o avançar da idade e após jogos como os últimos que vivenciamos, tenho vontade de desistir, mas, felizmente, tal vontade não dura mais do que o dia seguinte.

    De ingresso na mão, serei mais um entre tantos “BONS” Fluminenses no Maraca no próximo Domingo e, SEMPRE, com a esperança…

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