Nem mesmo a umidade do Rio de Janeiro é a mesma pro tricolor desde o 04 de novembro de 2023. Respira-se diferente, vê-se diferente, até mesmo se sorri diferente. Afinal, o tempo é disso mesmo. Numa tarde dessas, terça-feira ordinária, vou tomar meu café enquanto abro o Twitter torcendo pra não me estressar com mais um jogador de empresário-padrinho sendo contratado pelo Club.
Me encontra a reprise de um jogo nada ordinário, começo de julho de 2022 e todo coração Fluminense se esganava de negação e gratidão ao saber que via uma das últimas partidas de Frederico Chaves Guedes no Maracanã. Uns reduzem a grandiosidade de um clube a troféus, outros optam por ser honestos. Olhando pra trás, a sensação é diferente depois que tudo que se desenrolou daquele momento à conquista da América em 2023. Não é nostalgia, não é saudade.
Cada músculo do rosto de Fred entrando num misto de frenesi e catarse paralelos a cada tricolor presente depois daquele gol é tensionado demais. Como explicar tensão desse tamanho num jogo que o pó de arroz vencia por 3 a 0? Culpa do setor Sul do Maracanã, anunciando em uníssono e certeza absoluta que ele vai te pegar. Aos 36’59” levanta a mão pra garantir se era ele quem entraria no jogo, seguido de um singelo sorriso de canto de boca daqueles que não sei se contagia mais outros sorrisos ou o marinar dos olhos. Chama a torcida, já ensandecida e alucinada, tira o colete e trota do aquecimento abaixo da Sul Inferior até a beira do meio campo. Ali parou tudo.
Parou a bolsa que rompia, parou o tumor que alastra no tecido cerebral, parou a tradicional briga política familiar no ano de eleição. Parou a expansão do universo e seja lá o que vem depois pra presenciar o que ia acontecer. Fred vai entrar no jogo.
“(…) É o clube mais humano que conheci em toda minha vida. Eu acho que a gente valoriza muito as vitórias, os gols, os títulos, mas eu acho que para mim, aqui no Fluminense, o que mais me marcou foi quando eles me ajudaram quando eu estava querendo desistir. Quero agradecer do fundo de coração, a todos os tricolores”
Cumprimenta Fernando Diniz e sua comissão técnica, não sabe se bebe o copo de água ou se joga na própria cabeça pra ter certeza que aquilo acontecia mesmo. Não havia uma alma viva ou morta no antológico Maracanã com o cinismo de negar que era óbvio. Talvez a melhor definição do óbvio ululante de Nelson. Ele ia marcar. Eduardo Barros, assistende de Diniz, apresenta na prancheta um esquema tático pra Fred que certamente era um desenho de uma baliza e um objeto redondo dentro dela. Com dois gols nas costas (nada de novo sob o sol) sai Cano fazendo a comemoração do coração no escudo, marca registrada do camisa 9. Naqueles 38′ do segundo tempo o futuro do Fluminense saía pra que o passado ensinasse como se despede.
Tinha que ser aos 45. 45 minutos é a duração da partida, e essa se encerrava. Que partida você fez desde 2009, Frederico. Sagaz como um Moleque de Xerém, Martinelli pega a sobra, infiltra na grande área e passa pro meio, que com todo seu posicionamento nosso ídolo se repele da linha de zaga do Corinthians, amplo espaço, sozinho. Em um toque a mesma bola que vem no seu pé como passe vai como bomba pra estufar o véu de noiva. Virada de corpo, amplitude no chute das duas pernas aos dois braços, pé direito, chapa, fazendo o quarto gol da partida no ídolo corinthiano Cássio (houve um leve desvio em respeito ao grande goleiro). Sai correndo. O concreto do Maracanã desaba. Corre como uma criança hoje corre de felicidade após o golaço numa pelada em Teófilo Otoni, interior de MG. Essa criança era eu, você e ele próprio. Debruça em lágrimas, não tem o que segurar, já está tudo na mesa.
Humanidade é a palavra. Em tempos que o canal de televisão transmite uma notícia sobre o perigo das apostas online e em seguida passa o comercial de outro site de apostas esportivas, ídolos são definidos por engajamento, likes e compartilhamentos. Não, Fred, nós que não te merecemos. O humano erra e sua sorte é que em um mundo de ódio ‘o importante não é a queda, é a aterrissagem'[1]. A sorte de Fred foi o Fluminense e a sorte do Fluminense foi Fred. Enquanto a mídia dava a queda do Fluminense como certa, tinha um jogador que vinha da França com uma filha pequena. Enquanto a mídia dava o fracasso de Fred como certo, tinha uma torcida que o esperava em casa com café, uma fatia de bolo de fubá e o verde da esperança. Feliz por ter entregue flores em vida pro ídolo eterno, Frederico Chaves Guedes, primeiro jogador que eu quando criança aprendi a falar o nome completo. Naquela noite de sábado em 2022 o café gotejava, e terminando de beber o meu suspiro profundamente.
Era o gol 199 do camisa 9, camisa pesada que ainda não sabíamos quantas toneladas estava prestes a receber no próximo ano. Outro moleque mineiro que curte a noite, tinha que ser.
[1] Anedota do filme La Haine (2011), de Mathieu Kassovitz.
Foto: Wagner Meier
Belo texto. As lágrimas me atrapalharam um pouco pois bem na hora deu de cair um cisco.