O que sobrou do Fla x Flu (por Paulo-Roberto Andel)

Desci e o Maurício estava na portaria. Uniforme, casaco preto e a máscara do Fluminense. Comemoramos a vitória e fui para a rua.

Dormi pouco. Das duas da manhã às cinco e meia. Havia um monte de mensagens no WhatsApp, todas em êxtase com a bela virada no Maracanã.

No meio do Centro caótico e esvaziado, era o Fluminense que aquecia os humores em meio a tanto sofrimento. Camisa, boné ou bandeirinha, o camelô, o entregador e o mensageiro, todos respirando o jogo que nunca termina. A força do futebol é fascinante: o Fla x Flu ganhou o que sobrou das ruas, das conversas de uma região esvaziada e sofrida. Ao longe, a atendente da lanchonete na Sete de Setembro exibia sua máscara tricolor com orgulho.

Note-se que eram pessoas do povo, muitas vezes longe dos mafuás da internet, dos influenciadores de coisa alguma, da manipulação de informações, dos pernósticos de peito empinado – todos inúteis. Gente simples, que luta a muito custo para sobreviver e que tem no futebol um de seus únicos momentos de alegria. O Fluminense. O Fluminense.

A camisa branca desafiando a lógica. Fizemos um primeiro tempo patético. Na segunda etapa nos ajustamos e o empate foi justo. Podia acontecer qualquer coisa, então vencemos ao nosso estilo: ao apagar das luzes, quando a reação é impossível.

Araujo podia ter feito um gol de placa, mas a trave direita evitou. Wellington Silva poderia ter feito outro se soubesse finalizar. A posse de bola pode ser uma ilusão, e era mesmo.

A jogada que decidiu a partida explica tudo: o passe com empáfia de Filipe, a arrancada fulminante de Yago e o toque sutil. No último grão da ampulheta.

Queria falar de Marcos Felipe. O jovem goleiro passa uma tranquilidade de veterano. Gestos econômicos e precisos, deixando evidente que já deveria ter sido titular noutras temporadas.

Voltando ao povo. Perto da Praça Tiradentes, camelôs de gozação com seus colegas de pista. Vascaínos e botafoguenses, tão sofridos, achando uma réstia de felicidade nas piadas com os derrotados. Um senhor humílimo passando com sua camisa tricolor não oficial, desbotada, curada pelo tempo e linda mesmo assim.

Por que falamos tanto de um jogo que já tem dois dias? Porque não era uma partida vulgar, mas o Fla x Flu, o jogo que inventou a multidão. Perto de seus 110 anos, ele é uma biblioteca de histórias espetaculares. As camisas seculares numa eterna luta de boxe.

Tem Fluminense nos cantos desprezados, nas favelas ignoradas, no ir e vir das histórias de heróis anônimos e solitários, nos radinhos de pilha, nas conversas em pastelarias baratas. A falha de Filipe, o gol esperto de Yago, a tradicional vitória nos descontos. Tem Fluminense nos subúrbios, nas favelas cheias de sofrimento, no clingue-clangue dos trens da Central, nas barcas, nos jornais populares amassados.

O que sobrou deste Fla x Flu é que o Fluminense sempre manterá sua grandeza, mesmo quando tiver um time irregular, bastidores confusos, desconfianças. Quando o jogo começa, todos voltamos à infância e torcemos loucamente, mesmo sem lógica.

Num clássico, quase sempre não haverá o favorito de fato. As camisas se digladiam, os velhos desafios podem ser superados.

Nada mudou no geral. Talvez o Fluminense possa dar um sprint final à vaga na Libertadores. Talvez tenha sido apenas um lampejo. Mas uma coisa é certa: daqui a trinta anos, alguém vai falar do Fla x Flu em que o Flamengo, campeão carioca e vice-campeão mundial, era o grande favorito e poderia ter liquidado o jogo, mas o Fluminense deu o troco e o castigo na última bola, com requintes de crueldades. Do mesmo jeito que os garotos de 1979 falam dos inesquecíveis 3 a 0, ou do 1 a 0 de Amauri em 1982. Os garotos no créu de Thiago Neves. Jogos que não precisam ser de grandes campanhas para se tornar inesquecíveis.

São onze e meia de quinta-feira, uma noite calorenta e silenciosa de uma cidade triste, com seus moradores tristes e desempregados, famintos. Muita gente à beira do suicídio. Muita tristeza e ruindade. No meio dessa situação caótica, o Fla x Flu foi um pequeno carnaval tricolor, a hora de secar as lágrimas e se divertir a valer com um punhadinho de felicidade. A nossa camisa, o nosso escudo, a nossa vocação de mosca na sopa dos arrogantes, de estraga-prazeres da unanimidade. As dificuldades continuam e são grandes, mas é boa demais a sensação de vencer o grande rival, o grande jogo.

É pouco. Somos grandes. Merecemos muito mais. O clube agoniza. Mas hoje e nos próximos dias, o torcedor tricolor vai encarar suas dificuldades lambendo os beiços com gosto e dizendo sobre o Fla x Flu, sobre a vitória que ganhou as manchetes do país, sobre a cara de tacho dos comentaristas que desprezaram o Fluminense e apontaram o Flamengo como pré-vencedor.

Os garotinhos de 2021, vendo a corrida proletária de Yago para o gol da vitória, são os sucessores daqueles que viram o golaço de Rubens Galaxe, a elegância de Zezé Gomes, o garoto Alexandre cabeceando e se despedindo depois do cruzamento de Zé Teodoro.

Os olhos das crianças registram as nossas melhores histórias.

5 Comments

  1. Belo texto, o Fla flu nunca termina, é eterno, nosso goleiro lembra muito o Paulo Victor, seguro, tranquilo, e com ótimo reflexo, aptidões de um grande goleiro. O time é limitado tecnicamente, mas com vontade supera limitações, o Fred em campo passa a grandeza de um vencedor;
    Apesar de todo sofrimento causado em face da pandemia, pelo menos sobram essas alegrias, vencer um Fla flu é e sempre será um acalento em qualquer situação.

  2. O ÓTIMO NARRADOR CONFUNDIRA – SE E A BEM DA VERDADE O GOL DO ALEXANDRE SÓ HOUVE PORQUANTO O GRAVATINHA LIQUIDARA O SOBRENATURAL DE ALMEIDA, ENCARNADO NO FLAMENGO…

  3. Belo texto, como sempre.
    Sem querer desvirtuá-lo, gostaria de destacar que temos uma oportunidade ímpar. Faltam 10 rodadas, o time nao vai cair, a vaga na pré libertadores é uma possibilidade real, especialmente se o G7(ja conto com g7) virar g8…poderíamos começar a reciclar o elenco e trazer o novo treinador logo. Jogadores como Martinelli ,André, wallace, john Kennedy poderiam ser gradualmente lançados. Inadmissível felipe cardoso ter todo jogo uma oportunidade de tropeçar na bola e JK nem prp banco ir. Inaceitável yuri bancar martinelli. O Fluminense do Mario nao é meritocrático, mas…

  4. Um dos Fla x Flus inesquecíveis da minha infância/adolescência! Gol do Alexandre! Por onde andas? Com certeza ainda habita meus sonhos…

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