O passivo de Amy Winehouse (por Alva Benigno)

alva benigno green

Chiquinho Zanzibar acordou no domingo pela manhã, com alguma chuva, e logo ligou a TV exatamente na hora de um pênalti para o Botafogo diante do Santos. Sentiu náuseas ao ouvir que o cobrador tinha o nome de Neílton, deixando aflorar todo o seu preconceito chinfrim: “Como pode ser feliz um garoto com nome de jagunço? Que coisa de pobre”. O decadente esnobe acabou azarando o jovem jogador alvinegro, que desperdiçou a cobrança. “Eu avisei! Com um nome desses, tinha que estar catando pedra no que restou de Serra Pelada”. No universo chiquínico, nomes e sobrenomes definem as pessoas. Sozinho, pensou: “Se eu for presidenta do Fluminense, acabo com essas coisas de nomes horrendos, gente gorda de óculos escrotos, feiosos, negros, chega do meu Tricolor ser vilipendiado por essa gentinha. Eu vou mandar! Mas eu não sou aquele gato cafungante…”

A criada desta vez estava de folga, ninguém a lhe servir, havia apenas Esmeralda, sua esposa, deitada em sono romântico, às vezes balbuciando: contrariando todos os prognósticos, os dois transaram na véspera, depois do jogo do Fluminense com a Chapecoense, um empate sem gols onde o Tricolor foi melhor mas sem poderio ofensivo.

Nosso herói de caráter desprezível viu a partida e, por já desconfiar que teria de atender aos desejos ardentes de Esmeralda (contra a vontade), concentrou-se em um de seus esportes prediletos: a manjada. Em vários lances do jogo, prestou menos atenção à bola do que nas elegâncias sutis de Fred, Cícero, Jonathan, Henrique e Cavalieri, alimentando suas fantasias homoeróticas a ponto de lhe causarem o plus para satisfazer a esposa. Também manjou jogadores da Chapecoense, mas de leve, devido ao seu horror aos “índios”. Depois do empate, transou como um verdadeiro macho e causou boas reações em Esmeralda. Ela se liquefazia e sequer desconfiava que seu homem a penetrava pensando no vestiário masculino, repleto de homens nus com as vergonhas de fora. Ou a velha Pecadópolis no sítio de Burke Marx. Ou ainda a sua inesquecível galeria do amor, a Alaska, repleta de homens entendidos dispostos às alcovas que encantavam Oscar Wilde.

Esmeralda dormia em berço esplêndido, alimentando o sono do prazer cumprido. Era uma mulher bastante interessante, ainda com seus seios fartos e curvas desenhadas debaixo de um lençol safadinho. Ao lado, Chiquinho permanecia em silêncio e espiava o resto do jogo no Pacaembu, onde o Santos fez 3 a 0 sem apelação. Findo o jogo, mudou de canal e passou a assistir o documentário sobre a falecida cantora Amy Winehouse, no exato momento em que ela aparecia à tela ao lado do ex-marido Blake Fielder, que lhe abriu as portas do universo junkie. Os dois trocam um beijo carinhoso na boca e, num silêncio íntimo, Chiquinho sonhou ser Amy. Ele queria o beijo de Blake e muito mais. Talvez usar drogas pesadas com o amante imaginário e praticar dirty sex, na areia mais próxima possível dos esgotos da praia de Copacabana – ou debaixo do viaduto Pedro Álvares Cabral, onde poderia se sentir uma fêmea mendiga de quatro, com os joelhos esfolados no concreto enquanto o inglês, no papel de um morador de rua, invadiria suas carnes.

Num súbito, um estalo de espanto e até falta de ar. Chiquinho caiu em si, deixando de lado a fantasia homo. Lembrou de onde estava, do domingo de manhã adentrando a tarde, enquanto Esmeralda navegava no sono. Em certo momento, chegou a estar com a mão dentro da cueca, mas o tesão recuou. Podia levantar vagarosamente, tomar um banho, fumar um becão no banheiro fechado, depois deixar a ducha molhar seu corpo – e a duchinha especificamente no traseiro. Desistiu.

Era um domingo de chuva, sem criadagem, sem grandes emoções enquanto o documentário narrava o comovente calvário de Amy Winehouse. Ali eram o amor, a doçura e as drogas devastando um talento mundial. Por alguns instantes raros, Chiquinho deixou de lado seu egoísmo, seus preconceitos meritocratas, sua adoração por ditaduras e generais. Nenhum empregado a ser humilhado. Nenhuma idosa reacionária no elevador. Nenhum desejo de constranger os humildes. Nem queria ir à sauna do clube para admirar os colegas. Em certo momento, a polícia arrombou a porta da casa de Amy e Chiquinho até se assustou: e se acontecesse o mesmo em sua casa? Tudo bem, a maconha estava bem escondida e ele, ao lado da mulher nua, seria flagrado em seu teatro de masculinidade. Quem sabe uma manchete de jornal?

Outro segundo, outro pensamento, o mesmo silêncio. Virou-se, colocou o travesseiro no rosto e começou lentamente a lamber a fronha até mordê-la. Na TV, Amy fumava um cigarro. O pós sexo de treze horas nunca tinha sido tão prolongado para Chiquinho. Inerte na condição de telespectador, parceiro involuntário da mulher que o amava sem esperar recíproca, aturdido por seus desejos homossexuais apenas ali reprimidos, ouvindo a narração tortuosa do documentário sobre a vida vertiginosa de Amy Winehouse, tendo à frente uma tarde de silêncios sem repressões a terceiros ou a si mesmo, ele atingiu seu clímax: era definitivamente um homem passivo. Um domingo de paz, sem pensar numa saracoteante segunda-feira. Relaxado e passivo.

Mas não por muito tempo. Afinal, logo cedo no dia seguinte, Gomes, o rapaz da padaria, com olhos verdes, bíceps imensos obtidos com muita malhação – sem bomba – e barba máscula padrão Cavalieri, traria cedo pão e leite enquanto Esmeralda ia para a academia. Com cinquenta reais, meia hora e o quarto da empregada vazio enquanto ela não chegasse, tudo viraria mera e safadinha sauna do clube. A verdade não perdoa a passividade de um domingo de chuva.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Imagem: hitch

2 Comments

  1. Interessante botar no papel os desejos de carne. ST

  2. Apesar do codinome, o estilo revela a autoria. O “Chiquinho Zanzibar” também se visualisa em 3D. Deve haver razões, além da desprezível arrogância e do preconceito latente de “Chiquinho”, que justifiquem a necessidade de mantê-lo em evidência através dos seus textos. Pessoas desprezíveis não merecem que falemos delas. Nem mesmo de mal. Desejo um ano de conquistas ao nosso Tricolor, para que nenhum espectro ronde as Laranjeiras.

Comments are closed.