I
Olhando em retrospectiva, posso compreender o momento exato em que adentrávamos a rampa de acesso às arquibancadas. Através de pequenos túneis que circundavam o anel do estádio, dentro dos quais havia pouca luminosidade, fazia-se a travessia: da escuridão à luz. Como uma sala de cinema em que se apagam as luzes e se acende o refletor, os olhos estranhavam a luminosidade. O gramado embaixo verdejando; em frente, oposta a nós, a torcida adversária com suas bandeiras desfraldadas.
II
Íamos migrando por um dos degraus da arquibancada, eu e meu pai, até o ponto em que sempre nos fixávamos: atrás do gol. Ficávamos ali e acho que posso compreender porque. Havia os que preferiam o centro do campo; outros, próximos à grade que separavam as arquibancadas das cadeiras especiais.
III
Os times adentram o gramado do Maracanã. Uma densa cortina de fumaça encobre o estádio. Não se vê mais nada. As torcidas disputam cada palmo de arquibancada e poderíamos afirmar que nenhuma prevalece sobre a outra.
IV
Vai começar. Tudo pronto. Você, ouvinte, é a nossa meta. Pensando em você é que procuramos fazer o melhor. Domingo é dia de esporte. O domingo é nosso.
V
Inicia-se a partida. E lá vem o time adversário. Eles vêm com a bola de pé em pé. É raro um passe errado. Cada lance é extremamente trabalhado, de maneira que podemos entender porque permanecem tanto tempo na liderança do campeonato. Lá vêm eles: cada um, estilista na sua posição. Pobre do meu time. Seria goleado, não fosse a defesa, acostumada aos bombardeios adversários. A cada cruzamento na área, os zagueiros se antecipam, bem postados, e interceptam o lance.
VI
Quinze minutos do primeiro tempo: a primeira falta perigosa. E contra a gente. Arma-se a barreira. Silêncio no Maracanã. Eu estou roendo as unhas e minhas pernas estão enroscadas uma na outra. Os homens na barreira protegem o piru. Escuto o barulho do chute, ainda que eu esteja tão distante do gramado. A bola raspa a trave. Se viesse na direção, não haveria defesa. Um bom goleiro tem que ter sorte.
VII
Explode à minha direita uma briga. A turma do deixa disso, assobia. Explode uma outra mais acima. O Maracanã é um vespeiro de abelhas assassinas.
VIII
Jogo difícil, jogo truncado. Clássico é clássico, ainda que a equipe adversária seja tão superior. Se fôssemos somar o salário de todos os jogadores do meu time, não chegaria ao montante de um jogador adversário. A forma de serem interceptados é com falta: não há solução. Se deixarmos jogarem, seremos esmagados.
IX
Mas existe o peso da camisa. Conseguimos ultrapassar a linha média do campo, depois de alguns minutos de bola rolando. Uma boa amostra do que ainda nos espera.
X
Lá vêm eles, sempre com perigo. É uma equipe leve, de jogadores ágeis e técnicos. Até quando conseguiremos segurar o placar? Vêm pelos flancos porque sabem que o meio permanece congestionado.
XI
O meu time é a coisa mais triste que existe, mas resiste. Raramente faz uma jogada com classe. Tem como única finalidade, truncar o jogo. Isso faz parte de uma longa tradição: temos uma conhecida escola de goleiros e nossos zagueiros sempre foram respeitados pelos atacantes adversários.
XII
Pouco adianta isso. Estão cada vez mais próximos do gol. Desta vez, o goleiro do meu time espalmou um chute dado com violência (tinha endereço certo e por muito pouco não abriram o marcador). A torcida adversária já comemorava.
XIII
O primeiro tempo vai acabar. Mas ainda há tempo para um último ataque, que não resulta em nada. O meu goleiro tem os ombros encurvados e a expressão do rosto carregada. Desce o vestiário rapidamente e evita as perguntas dos jornalistas.
XIV
Intervalo do jogo: uma pausa para esticarmos os ossos.
XV
Segundo tempo. As equipes trocaram de lado e tenho agora, à minha frente, o golquiper do time adversário. Como é diferente a sua postura. Os seus gestos são superficiais, de outra tessitura. Desvio meu olhar ao outro lado do campo e focalizo ele novamente: o goleiro do meu time.
XVI
A partida permanece igual ao primeiro tempo. Cabe ao time adversário tomar as iniciativas. Lá vêm eles: bola de pé em pé. A sua superioridade não se traduz no resultado. O placar permanece zero a zero.
XVII
Estamos de camisa vermelha, calções brancos e meias listradas em vermelho e branco. O time adversário usa o seu tradicional uniforme: camisa, calção e meias brancas.
XVIII
As torcidas fazem uma bonita festa, não fossem as brigas em ambos os lados. Embaixo, uma correria infernal entre os geraldinos impede que possamos detectar o foco da discórdia. Todos estão correndo e suponho que nem eles desconfiam da origem do corre-corre.
XIX
O jogo continua: o time adversário cobra um escanteio e a bola morre nas mãos do goleiro. Ninguém como ele para sair do gol. Um detalhe mórbido: ele trás o dedo mínimo decepado ao meio.
XX
Eles apertam mais. A bola não sai de nossa intermediária. Há um bate rebate sem fim. Compreendo agora o desespero de nosso goleiro, instruindo a defesa, saindo em bolas difíceis, tendo que gritar com os seus companheiros. Dizem que se suicidou anos mais tarde, jogando-se da janela de seu apartamento. Mas hoje é o principal homem da partida e garante o resultado.
XXI
O jogo ainda não terminou. Lá vêm eles de novo. As jogadas sempre nascem dos seus pés: o camisa dez (se jogasse em outra época, já teria sido vendido ao estrangeiro). As suas passadas são largas e elegantes. É o cérebro do time adversário.
XXII
Lá vem ele em diagonal: jogada mortal. Nunca olha pra bola. Desconfia da má colocação do goleiro e tenta surpreendê-lo. A bola toma uma curva e vai morrer na última gaveta. A torcida adversária levanta, pronta pra arrebentar os pulmões em grito de gol. Ele dá o salto. Improvável que consiga alcançá-la: a bola vai beijando a rede. Acho que nesse instante alguma coisa aconteceu. O tempo passou. Meu pai morreu, minha mãe morreu. As minhas retinas tão fatigadas.
XXIII
O jogo fica suspenso. Como se todos os jogadores tivessem se tornado estátuas, menos ele. Ele continua suspenso no ar: com a bola entre as mãos, vence a força da gravidade e permanece flutuando.
FIM
Panorama Tricolor
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Imagem: rs/pra
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VC SÓ ESQUECEU DE NOMEAR ESSE GOLEIRO, O QUE FAÇO COM O MAIOR PRAZER,
DIEGO CAVALIERI
OBRIGADO