“E se você ficasse louco, mas louco mesmo, completamente entorpecido de alegria por saber que está deitado no setor mais popular do maior estádio do mundo, e dentro de uma hora e meia o seu time – o melhor do mundo – pisaria o gramado após ter subido a escada do túnel de acesso e carregaria uma bandeira a ser sacudida no meio de campo, depois dobrada por dois heróis pretos, espertos, malandros finos e sorridentes?”
“E se aos poucos o céu nublado na grande tela circular formada pela marquise do Maracanã se abrisse? Mostrando aos poucos as pequenas estrelas que já faleceram, mas que somente agora vemos à luz? E uma estrela, outra estrela e mais uma estrela até que o nublado desse adeus e se pudesse enxergar o firmamento, como se este servisse de anfitrião para as boas vindas ao time do Fluminense, esse amor inabalável, esse escudo que está nos times de botão, no totó, nos fliperamas, nas paredes e muros das casas pobres de subúrbio, nas janelas abastadas do mar do Leme onde um grande delegado ajeita sua bandeira e toma um drinque relaxante depois de um dia muito difícil em ação.”
“Acima, na arquibancada atrás do gol, onde ficam as camisas mais brancas contrastando com o preto das peles honestas, o humorista Tião Macalé xinga o árbitro uma hora antes da partida. Contou na praia que era para dar sorte ao Flu.”
Nada a comemorar ou festejar agora. Sinceramente. Fogos, nem pensar? Champagne? Não, obrigado.
Nenhum tapinha nas costas. Não, obrigado.
Ver o muro das Laranjeiras pintado não me chama à comemoração, mas sim ao alívio. A vitória do bom senso no processo do pó de arroz, traz alegria e, acima de tudo, um grande alívio. Agradecimento eterno ao Gustavo Albuquerque pelo seu gigantesco empenho pessoal na causa ao lado de Gabriel Machado. Ainda temos quem nos defenda, geralmente fora do clube.
Exceção? O fato do Fluminense hoje ter uma boa colocação na tabela do campeonato brasileiro, muito além das expectativas gerais e do planejanento Febeapá – e tomara que se mantenha bem no certame.
Ficar feliz com esta posição não significa fazer vista grossa aos estoques de erros das Laranjeiras, endógenos ou exógenos, subterrâneos ou terrestres. Nem significará. Uma coisa é o Fluminense, o time, a magia, o sentimento. Outra é quem o subverte. E reconhecer estes erros também não pode significar o desrespeito às coisas boas que lá acontecem. Penso em três nomes: Dhaniel, Heitor e Gabriel.
Sem comemorar, mas registrar o 450, um número simpático de três algarismos legais, e uma brincadeira com os 450 anos do Rio de Janeiro, hoje tão sofrido.
Então aqui estive 450 vezes neste espaço para falar do Fluminense porque o amo. Se não o amasse, não investiria o tempo que invisto neste sítio. O tempo que sacrifico de minha literatura fora do futebol, de meu horário de almoço, de minhas horas de descanso, de diversão com minha namorada, muitos outros mais. Talvez valha a pena, contando com a compreensão dos outros; gosto de escrever, mesmo sabendo que ser um autor de livros de futebol contribuiu negativamente em relação às minhas pretensões literárias noutras searas (a intelligentzia detesta escritores de futebol, considerando-os “menores”). Nenhum arrependimento, pois. Escrevo porque gosto, não para ser lido, compartilhado ou “likeado”. A quem também gosta e apoia, meu total agradecimento. Nunca imaginei no passado que alguém fosse ler meus escritos.
Na verdade, muito mais do que 450 vezes. As pessoas que acompanham o PANORAMA de perto sabem que mantê-lo diariamente ativo é infinitamente mais difícil do que escrever colunas. Um trabalho voluntário de horas de domingo a domingo. Teria sido muito difícil se não tivéssemos o Seu Limão, por exemplo. E, sem demagogia, eu mesmo para o trabalho mais pesado – o braçal.
Quando este sítio surgiu há quase três anos, este colunista sofria uma injustiça muito difícil (curiosamente, nas últimas semanas, o mesmo cenário se repetiu). Quem socorreu não foi um tricolor, mas um vascaíno: Zeh Augusto Catalano, criador e um dos editores deste PANORAMA, que não priorizou questiúnculas interclubes mas a coisa mais digna – e de única utilidade – que existe na Terra: a amizade verdadeira, sem escoras nas conveniências. O compromisso. O espírito de equipe. A solidariedade. Catalano veio dos tempos da UERJ, coisa de 25 anos atrás, quando ingenuamente achávamos que seria possível mudar o mundo e desinfetá-lo da vaidade. É isso: este PANORAMA, que agrada a muitos – e conta com o despeito de alguns infelizes sexuais -, foi ninado no colo por uma cruz de malta para se transformar num bandeirão tricolor virtual (com muito pó de arroz). E sem xenofobias estúpidas.
Olhando para trás, uma das coisas mais legais daqui foi ter arregimentado uma quantidade enorme de bons escritores. Do grande elenco, a maior parte foi de minha responsabilidade (e risco às vezes desmedido). Achei gente em sites cult, trouxe um amigo que escrevia e-mails quilométricos – convencendo-o de que aquilo daria pé (inicialmente ele achava que não) -, amigos dos amigos, até quem não era meu amigo porque me achava “de direita” (perdão, as gargalhadas são inevitáveis: lembro dos idiotas que resumem este sítio a um “ninho de comunistas”). Dezenas de pessoas vieram, outras se foram, a vida seguiu. Imagine que já publicamos aqui quase 5 mil páginas de texto, o que dá perto de uns quarenta livros. Uma boa biblioteca para o Fluminense, de graça. Repetindo: DE GRAÇA. Alguns dos melhores escritores do Flu passaram por aqui, outros permanecem. Claro que também errei a mão, nem tudo mundo merecia a confiança que recebeu. Passou. O importante foi ter acontecido um handicap: agregar pessoas.
“Estávamos desapontados com uma goleada sofrida para o Botafogo, 1986. Sábado à noite, jogo vazio, chinelada consolidada, 4 a 0, resolvemos fazer o que nunca fazíamos: ir embora mais cedo. Lentamente subimos os degraus grandões do concreto triste, única alternativa para sairmos por cima daquela situação. Mas sempre espiando o gramado a cada três passos: quem sabe o Fluminense não poderia fazer ao menos um gol? Uma jogada infantil na meia direita, a bola perdida em vão, tudo estava perdido. Passamos por uma coluna, outra coluna. A parede fechou as visões. Tomamos o caminho da resignação até bem perto da grande rampa. Num súbito, ecoaram alguns gritos tímidos: gol! Gol! Gritos contidos, amuados, mas percebemos do que se tratava e resolvemos voltar. A bola estava no meio de campo, o placar mostrava uma bolinha desenhada com suas lâmpadas de brilho intenso. João Carlos sentenciou: “Só pode ter sido coisa do Negão”. E era: depois da bolinha, o algarismo 9 e o nome de Washington surgiram lentamente, da direita para a esquerda, na tela da consolação.”
Algum sentido nisso tudo?
Há quem diga que não. Há quem diga que tudo é feito para se “aparecer”. Palpite infeliz e, sinceramente, de uma ignorância extrema. Se soubessem das dezenas de vezes em que eu mesmo não quis apresentar nosso programa semanal de TV… com o único propósito de revezar a equipe, acreditar no potencial das pessoas, fazer o time jogar junto, coisas que nem todo mundo é capaz de sentir ou praticar, talvez engolissem a saliva ignara.
Ao pensar em dirigentes de má-fé, jogadores que fazem corpo mole, corneteiros, a cracolândia da ética, qualquer um pode desistir do futebol inteiro. Mas que tal passar os dias escrevendo como se fossem páginas de um livro, para que as pessoas o leiam e até se divirtam? No mínimo, uma boa ação. Juntando com o Fluminense, melhor ainda.
É preciso ser justo: atravessar todo esse caminho não foi nada diante do vale de lágrimas e angústia na terceira divisão.
Duro mesmo é pensar que meu pai não esteja aqui. Não leu uma mísera coluninha minha, nenhum dos livros, nenhum poema, não viu a enorme defesa feita contra a imprensa covarde que atacou o clube em 2013, enquanto pombos de peito estufado viraram avestruzes – e enfiaram a cabeça na terra. Também enquanto isso, cinquenta páginas de “Pagar o quê?” foram escritas em um dia e meio. Anoiteceu em certas regiões.
Lá se foram 450 colunas defendendo o Fluminense e não os interesses particulares ou corporativos de terceiros. Elogiando sempre que justo e criticando idem. Chorando e rindo. Nenhum texto teve corpo mole nem tolerou falta de compromisso de quem fosse, mesmo qualquer ídolo da torcida. Então por 450 vezes, eu publiquei o que vi, pensei e senti, sem me preocupar com a completa estupidez que seria a de me achar dono da verdade – toda vez que se deparar com alguém assim, tenha certeza: não perca tempo e pule fora! -, com todo o ridículo contido nesta sentença (ei: você já leu isso outras vezes). Acabo rindo, são dignos de pena.
Por esta ocasião, agradeço a todos os que se dispuseram (e/ou dispõem) a colaborar com este projeto, alguns mais, outros menos, a quantidade não importa. Cada um colocou o tijolinho que pôde (ou quis) nesta parede que talvez tenha sido – e ainda seja – uma das pequenas muralhas do Fluminense pelo mundão da internéti.
Do futuro, não sei dizer. Quando começamos, não sabia se ia dar certo. Pensei que, se todos desistissem, essa ação entre amigos viraria a navegação de um viajante solitário. O barco resistiu bravamente até aqui a todas as tempestades de divergências, vaidades e pequenos erros que os humanos cometem diariamente pelas travessas dos poetas de calçada. Não sabia que poderia chegar a 450, como não sei se poderá alcançar 900, 3.000 ou 455. Mas ter vindo até aqui já dá uma sensação inequívoca e agradável de missão cumprida. Se acabasse hoje, já estava ótimo.
O Fluminense está acima dos homens, bons ou maus, coletivistas ou individualistas. Todos. Tudo passa. Erros acontecem. O que a história não perdoa é hipocrisia, covardia e pilantragem.
No fim das contas, a grande dor é saber que não somos merrrrrrrrda nenhuma (neologismo catalânico). A carne que, uma vez finada, apodrece e se decompõe em menos de 24 horas, tanto fazendo se estiver em grandes memoriais ou humildes covas rasas. É tudo a mesma merrrrrda.
Enquanto isso, vamos nos desviando das facadas e das balas perdidas desde cidade maravilhosa. E da vaidade, a metástase da alma.
O herói de sempre, Ivan Lessa:
“A crônica vai registrando, o cronista vai falando sozinho diante de todo mundo.”
Muddy Waters:
“Rolling stones gather no moss.” (pedras que rolam não criam limo)
Helio Oiticica:
“Descobri que o que faço é música e que música não é uma das artes, mas a síntese da conseqüência da descoberta do corpo.”
De tudo o que já foi publicado aqui, nada é mais importante do que o Panorama Trash Show.
A vida como ela devia ser: rindo.
PARATODOS
“Aqueles garotinhos pretos e morenos, baixotes, magricelos, com suas caixinhas de chicletes ou de engraxate, loucos para conseguir o primeiro trocado, a primeira moeda de cruzeiro que permitisse comprar o sonhado ingresso, qualquer ingresso, qualquer jeito de passar pelo maravilhoso túnel do tempo na roleta, atravessar as sombras e, num rompante, ganhar à vista a mais bela das paisagens do futebol: o Maracanã, majestoso, divino, grandioso. Tanto fazia se a visão era do alto ou do baixo. À beira do campo, quase escalando os ferros de proteção da geral para enxergar alguma coisa – sem cair no fosso – ou o outro lado do gramado – malditos repórteres que não se abaixam! – queria ser um gandula! De cima, a beleza panorâmica da casa que acolheu os dribles mágicos de Garrincha e Pelé era a mesma que servia de varanda para o amado time do Fluminense, ora com suas camisas tricolores de elegância monumental, ora com seu uniforme todo branco sugerindo uma praça de avassaladora e desconcertante paz. Ah, aqueles garotinhos, onde moram além da minha infância distante que me encanta em lágrimas?”
Panorama Tricolor
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