O fairplay financeiro dos clubes II (por Felipe Fleury)

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(continuação da publicação do dia 11/01/2015)

Mudando o foco para o Brasil, seria possível que essa opção “menos pior” funcionasse por aqui? Na Europa, as famigeradas “brechas” já foram criadas – vide PSG – e outros clubes, como o Manchester City, procuram o Judiciário para evitar a aplicação de pesadas multas, como aquela de 60 milhões de euros aplicada por descumprimento do fair play financeiro.

O Bom Senso F.C., os representantes dos Clubes e a CBF já se reuniram e acordaram um modelo de fair play similar ao europeu em obrigações e sanções – adequando-o à realidade nacional para incluir o atraso ou não pagamento dos direitos de imagem, a possibilidade de rebaixamento, a aplicação da pena somente nas competições seguintes (não haveria a perda de pontos), a fim de não inviabilizar através de medidas judiciais a competição em andamento e a impossibilidade de reeleição dos dirigentes responsáveis. Os clubes também não poderiam antecipar receitas para a contratação de jogadores, apenas para custear dívidas com a construção de centros de treinamento e estádios. Seria criado, ainda, um órgão regulatório para fiscalizar a atuação financeira dos clubes formado por dois conselhos. O primeiro, integrado por representantes dos jogadores, treinadores, árbitros, patrocinadores, clubes e da própria CBF; o segundo, por especialistas da área.

Frise-se que a proposta acordada pelo Bom Senso com a CBF e os clubes deverá ser integralmente acolhida pela confederação nacional nos regulamentos de suas competições. Contudo, o maior credor dos clubes, o Estado, também planeja incluir no Projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal (LRFE) regras de responsabilização dos clubes e seus dirigentes. Resta saber se não haverá incompatibilidade entre ambas, porque se houver, prevalecerá sempre a lei que, por certo, será promulgada depois de emendas e lobbys promovidos por grupos parlamentares que defendem interesses outros que não o da moralização do futebol brasileiro, o que é um risco.

O certo é que o fair play financeiro, como estatuído no artigo 105 do Rgulamento Geral das Competições da CBF, estará em vigor, ainda que administrativamente, já para as competições nacionais de 2015.

Estamos, contudo, prontos para recebê-lo como a solução para a irresponsabilidade e incompetência de nossos dirigentes?

O jornalista Luiz Augusto Veloso publicou, no Jornal O Globo de 28 de dezembro de 2014, texto intitulado “Fair play financeiro no futebol já!” em que reconhece o instituo, nos moldes do aplicado pela UEFA e ligas americanas, como medida necessária e suficiente para uma mudança radical e profunda na forma como os clubes são administrados, porque “nada mobiliza e aflige tanto os dirigentes de futebol como os resultados esportivos de sua equipe (…) A impulsividade, a irresponsabilidade ou a incompetência doerão na carne, naquilo que é mais sagrado no esporte: vencer ou perder.”

Eu não seria tão veemente quanto o nobre jornalista, cuja opinião respeito e até compreendo, todavia com sensíveis ressalvas. Honrar compromissos deveria ser a regra e não a exceção, não apenas no futebol, mas em qualquer relação social. Providências realmente devem ser adotadas para que o esporte sobreviva às insanidades financeiras promovidas por muitos de seus gestores. Não será, entretanto, a partir de regulamentações bem-intencionadas, mas sem efetividade, que o break-even será atingido. Para que o fairplay financeiro seja compreendido pelos mandatários do futebol como uma medida saneadora dos clubes e que visa à preservação da própria existência do esporte, não basta importá-lo e aplicá-lo à nossa realidade pura e simplesmente.

O que “dói na carne” do “cartola”, ao contrário do que afirma o ilustre jornalista, não é o perder ou vencer; é, ao contrário, o seu bolso ou a sua liberdade. É isso o que “mobiliza e aflige os dirigentes esportivos”. Os resultados da equipe, perdas de pontos, desclassificações, rebaixamentos atingem diretamente o clube de futebol e o que ele tem de mais sagrado, que é o seu torcedor, seu maior patrimônio, e apenas indiretamente os seus dirigentes. Portanto, se o fair play não vier acompanhado de medidas que os responsabilizem civil e criminalmente, nada efetivamente mudará.

Apenas a título de exemplo, com o que estariam preocupados o senhor Manuel da Lupa e outros integrantes da cúpula da Portuguesa de Desportos envolvidos no escândalo da venda de vaga na série A? Com a possibilidade de o seu clube ser punido com perda de pontos, rebaixamento? Claro que não. Quando venderam a vaga estavam preocupados apenas com seus próprios bolsos e se locupletaram às custas do patrimònio e até da própria futura existência da instituição paulistana. E é isso o que ocorre, em maior ou menor escala nos clubes brasileiros. Os dirigentes que malversam as verbas sob suas responsabilidades, que não honram compromissos, que agem com má-fé, em regra, põem seus interesses e ambições pessoais acima das dos clubes que comandam. Seja por dinheiro, seja por interesse político, o clube, via de regra, não está em primeiro lugar. Punir somente o clube, multar somente o clube é punir o seu torcedor, porque se os mandatários realmente fossem administradores responsáveis, sentiriam a dor das punições a eles infligidas e, provavelmente, não haveria motivos para que se criasse um fair play financeiro.

Tais medidas, entretanto, não poderiam ser veiculadas em regulamentos administrativos; portanto, nem a FIFA nem a CBF poderiam estipulá-las. Somente a União, através do devido processo legislativo, poderá editar disposições legais que imponham responsabilizações civis e penais sobre dirigentes esportivos.

Para que possa corrigir uma cultura de dilapidação do patrimônio das entidades futebolísticas brasileiras, a proposta da CBF deve alcançar as brechas legais para que não se torne inócua e alvo de inúmeras ações judiciais, além de levar em consideração outras situações que devem ser apreciadas no momento do cumprimento dos ajustes financeiros firmados, como a culpa exclusiva de terceiro. Nem sempre, e não se deseja aqui excluir a responsabilidade dos gestores, a malversação das verbas decorre de irresponsabilidade ou incompetência dos atuais mandatários. As dívidas atuais e que, não raro, impedem o adimplemento dos compromissos financeiros dos clubes, foram forjadas há décadas e são heranças malditas de muitos dirigentes de outrora que também agiam, como outros tantos hoje, sem qualquer controle e compromisso, dilapidando o patrimônio de suas instituições.

Ademais, como aconteceu há não muito tempo com o Fluminense Football Club, a atuação discricionária, no caso até arbitrária, da Administração Pública Fiscal, impediu a renegociação das suas dívidas fiscais, sufocando-o financeiramente a ponto de não poder honrar diversos compromissos, inclusive salariais. Admitiu, porém, violando expressamente o princípio da igualdade, a concessão do benefício a outras agremiações em idêntica situação fiscal.

N’outro ponto, importante fixar o alcance do conceito de arrecadação, necessário para se estabelecer os limites do que se pode gastar. Um conceito aberto, vago, possivelmente gerará dúvidas que inviabilizarão a aplicação das sanções e ensejará ações e recursos judiciais ou novas formas de burla, como admite o âncora de esportes da CNN International, Pedro Pinto: “No fim das contas, os grandes clubes são como grandes marcas e sempre encontrarão uma maneira de fazer dinheiro, seja através de um contrato de patrocínio, uma turnê antes da temporada ou investimentos de novos parceiros, as opções estão aí para serem exploradas.”.

Estas situações pontuais precisam ser analisadas caso a caso a fim de que o fair play seja um instrumento de salvação financeira dos clubes de futebol. Aplicá-lo sem as devidas correções e adequações ao futebol nacional pode constituir-se em instrumento de injustiça e desigualdade. Deverá, assim, ser menos um instrumento sancionatório dos clubes e, por via de consequência, de suas torcidas, do que dos dirigentes inescrupulosos. A aptidão para se corrigir anos e anos de uma cultura irresponsável de gestão administrativa no futebol dependerá da efetividade do cumprimento das penas e de seu direcionamento também e, principalmente, ao mau gestor, que deverá ser responsabilizado civilmente, através de seu próprio patrimônio, e criminalmente, cumprindo pena pelos crimes de gestão temerária, apropriação indébita, fraude à execução, estelionato, dentre outras tipificações legais porventura adequadas ao caso concreto.

Sem a adoção dessas medidas por parte da CBF e do Estado – não impor barreiras ao livre comércio, estabelecer conceito claro de arrecadação, analisar a responsabilidade exclusiva de terceiros no descumprimento das metas, responsabilização civil e criminal dos gestores etc -, cada um no âmbito de suas atribuições, supletivamente ao que já existe na Europa e se pretende fazer cumprir aqui, qualquer movimento pela moralização do futebol será incompleto e, portanto, inócuo.

A partir disso poderemos pensar, verdadeiramente, numa nova forma de administrar os rumos do esporte, com responsabilidade, eficiência, controle e compromisso. Este é o verdadeiro espírito do fair play financeiro. Enquanto isso, contudo, clubes e seus torcedores pagarão pela desídia de seus maus gestores.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Fontes:

http://pt.uefa.com/community/news/newsid=2065454.html;

http://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/2014/12/cbf-criara-fair-play-financeiro-para-os-clubes-e-divulgara-nos-regulamentos.html;

http://zh.clicrbs.com.br/rs/esportes/brasileirao/noticia/2014/10/fair-play-financeiro-podera-rebaixar-clubes-devedores-no-brasil-4615621.html;

http://trivela.uol.com.br/psg-encontrou-um-jeitinho-frances-de-burlar-o-fair-play-financeiro/;

http://espn.uol.com.br/noticia/470348_por-fair-play-financeiro-uefa-afasta-4-clubes-das-competicoes-europeias;

http://trivela.uol.com.br/advogado-da-lei-bosman-questiona-o-fair-play-financeiro/;

http://m.trivela.uol.com.br/torcida-manchester-city-esta-prestes-bater-de-frente-com-o-fair-play-financeiro/;

2014 copa