A CBF, através do artigo 105, do Regulamento Geral das Competições, anunciou, no mês de dezembro, a criação de normas do fair play financeiro e trabalhista que estabelecem requisitos e responsabilidades visando ao saneamento fiscal e financeiro dos clubes, sob pena de aplicação de penalidades desportivas. As normas específicas serão publicadas nos regulamentos de cada competição ou através de resoluções da própria CBF.
O que isso significa na prática? Significa que do jeito que está não dá para ficar. E como está? Clubes endividados continuam se endividando irresponsavelmente, contratando sem poder, gastando sem limites e, consequentemente, deixando de arcar, principalmente, com suas obrigações tributárias e trabalhistas, principalmente. Aliás, o débito tributário é a maior fatia do endividamento dos clubes.
As ligas esportivas profissionais americanas e a UEFA (Union of European Football Associations), a fim de controlar essa gastança desenfreada, a responsabilidade, a transparência e o controle na gestão dos clubes, adotaram o fair play financeiro nas competições que organizam. Baseia-se numa fórmula simples que é a de que não se deve gastar mais do que se arrecada, sob pena de aplicação de penalidades administrativas no âmbito esportivo, que vão desde uma simples multa até a proibição de se participar de competições organizadas pelas referidas entidades.
Antes de adentrar, especificamente, na seara nacional, vale conhecer um pouco do que acontece na Europa, onde o sistema está implantado oficialmente desde 2011.
O FFP (financial fair play) foi adotado pela UEFA, seguindo o modelo das ligas norte-americanas de esportes profissionais, com o objetivo de melhorar a saúde financeira do futebol europeu de clubes. Basicamente, os clubes que se qualificam dentro de campo para as competições da UEFA têm de se qualificar também fora dele, demonstrando que não possuem dívidas em atraso em relação a outras agremiações, jogadores, segurança social e ao Fisco (dívidas fiscais) e que estão com as suas contas em dia, respeitando uma gestão equilibrada nos negócios, ou seja, que não gastam mais do que arrecadam, o chamado break-even, expressão utilizada em economia e finanças para designar o ponto a partir do qual uma empresa deixa de perder dinheiro e passa a ganhar e equilibrar o capital investido.
Para que o controle seja efetivo, a fiscalização dos clubes europeus se dá por um comitê financeiro que analisa as suas contas nos últimos três anos, estipulando um limite de gastos por período de avaliação – a partir de 2015 o valor será de 30 milhões de euros anuais com uma margem para que seja extrapolado em no máximo 5 milhões de euros o que recebem como fontes de receita.
Atendidos esses pré-requisitos, os clubes estarão aptos às disputas organizadas pela associação europeia. Não atendidos, estarão sujeitos às seguintes sanções: i) advertência; ii) repreensão; iii) multa;
iv) dedução de pontos; v) retenção das receitas de uma competição da UEFA; vi) proibição de inscrição de novos jogadores nas competições da UEFA; vii) restrição ao número de jogadores que um clube pode inscrever para a participação em competições da UEFA, incluindo um limite financeiro sobre o custo total das despesas com salários dos jogadores inscritos na lista principal para a participação nas competições europeias; viii) desqualificação das competições a decorrer e/ou exclusão de futuras competições; ix) Retirada de um título ou prêmio.
A medida saneadora pode parecer, à primeira vista, a fórmula perfeita para a salvação financeira dos clubes e do próprio futebol mundial. Alguns clubes europeus, por exemplo, foram suspensos pela UEFA por não cumprirem o fair play financeiro imposto pela entidade. Assim, por exemplo, recentemente receberam a sanção o Bursaspor, da Turquia, o Ekranas, da Lituânia, além de Cluj e Astra Giurgiu, da Romênia, que não poderão participar das Ligas dos Campeões e Europa, incluindo as suas fases de classificação. Outros, também, foram severamente multados, como o Manchester City e o Paris Saint-Germain; multas elevadíssimas, de 60 milhões de euros para cada clube, que, por certo, não agradaram aos seus gestores. Blackburn Rovers, Leeds United e Nottingham Forest não poderão contratar jogadores na próxima janela de transferências da Europa, em janeiro, pois também violaram as regras de fair-play financeiro.
Os exemplos de sanções são muitos e somente o tempo dirá se todas serão efetivamente cumpridas.
Por outro lado, o próprio PSG já encontrou uma saída para burlar a fiscalização de suas contas. Gastou até os seus limites – impostos pela UEFA – ao trazer David Luiz por € 53 milhões. Mas não parou de contratar, a fim de satisfazer a sanha consumista e megalomaníaca de seu dono, o sheik Nasser Al-Khelaïfi. Anunciou, assim, a chegada de Serge Aurier, lateral que se destacou na Copa do Mundo pela Costa do Marfim. O seu preço, porém, era de € 9,5 milhões, o que extrapolaria os limites de sua cota de gastos para o ano de 2014. Para contratar o jogador, despendendo mais do que deveria, realizou negócio jurídico de empréstimo pelo período de um ano, ficando acertado em contrato que seu repasse definitivo ao clube parisiense seria obrigatório após o decurso daquele prazo. Ou seja, pelo valor do empréstimo paga-se consideravelmente menos, adequando-se, assim, ao teto estabelecido pelo fairplay financeiro, transferindo-se o preço efetivo pelos direitos para o ano seguinte, já sob a égide de uma margem agora compatível com as suas necessidades, uma vez que a contratação “dispendiosa” (David Luiz) fora realizada no ano anterior. Não há, em princípio, nada de ilícito nessa postergação negocial, o que pode vir a ser uma válvula de escape para o desrespeito ao fair play aqui no Brasil também.
A medida “perfeita”, assim, pode ter suas brechas e outras podem surgir quando efetivamente implementada em solo tupiniquim, até porque nisso somos mestres. Apesar de ser uma ação aparentemente bem intencionada, não está encontrando a receptividade que se esperava em solos europeus, pelo menos por parte dos dirigentes dos clubes; afinal de contas, ninguém gosta de ser punido, de sofrer pesadas multas e ser cobrado politicamente pela formação de equipes modestas que não renderão o esperado nas competições europeias em virtude das limitações da medida, mesmo que o propósito seja a salvação de suas instituições e até do próprio futebol.
O blogueiro Emerson Gonçalves, do “Olhar Crônico Esportivo”, ao analisar os resultados de uma pesquisa realizada sobre a repercussão do fair play esportivo no futebol inglês, corrobora o entendimento de que o desejo, às vezes mais do que a necessidade, dos gestores dos grandes clubes europeus – sheiks, milionários russos, dentre outros, – de esbanjar para conquistar, contribui para o desequilíbrio financeiro das equipes. Assevera que: “Entre os muitos fatores que contribuem para aumentar a instabilidade e o risco econômico dos clubes está a dependência do proprietário ou de um pequeno número de acionistas, interessados sempre em conseguir sucesso no campo (e resultados financeiros, na essência) no curto prazo”. Segundo o mesmo blog, 65% dos clubes da Premier League são dependentes dos principais acionistas. Conclui-se, sem dificuldade, que acionistas e proprietários milionários, para quem o “céu é o limite”, não se submeterão facilmente às regras de limitação financeira de gastos, mormente quando, sobre essa gente sempre paira a desconfiança de que a enxurrada de dinheiro investido sirva para dissimular negócios escusos – a famigerada lavagem de dinheiro.
Há outras implicações, suscitadas por especialistas do velho continente, que lançam sobre o fair play financeiro a pecha da ilegalidade. E este pode ser o caminho para a derrubada do FFP na Europa. Um dos maiores especialistas em direito esportivo europeu, o advogado Jean-Louis Dupont – cuja interferência judicial foi responsável pela criação da Lei Bosman, que derrubou a Lei do Passe em solo europeu na década de 1990 – é um dos principais opositores do projeto e já afirmou que “a regra de igualdade de gastos não irá ajudar na estabilidade dos clubes a longo prazo. O único objetivo que será alcançado é que irá congelar a estrutura existente de mercado, o que significa que os grandes clubes permanecerão grandes. Como você pode dizer que isso é bom para o futebol? Simplesmente vai engesssar o sistema.” Markus Sass, da Universidade de Magdeburg, na mesma linha, afirma que: “Como clubes menores não são autorizados a gastar mais e, assim, investir em um modo de aumentar o seu tamanho de mercado no futuro, o modelo prevê uma tendência negativa no equilíbrio competitivo.” Alinham-se aos dois Paul Madden, da Universidade de Manchester, Rob Simmons, da Universidade de Lancaster e outros especialistas em direito esportivo, para quem em que pese o valor da intenção, a regra do fairplay financeiro pode criar um problema maior de competitividade, impedindo o livre comércio, uma premissa básica da liberdade econômica da União Europeia e dos acordos comerciais entre os países.
Importante frisar que, para esses estudiosos, não haveria justiça desportiva e legalidade no controle dos gastos dos clubes pela UEFA, uma vez que os atletas teriam um mercado menor para atuar e os seus salários seriam diminuídos em razão da adequação aos limites fixados pelas normas do fairplay. Deve-se, nessa toada, identificar a diminuição da circulação de atletas – restrição negocial em razão de um mercado enxuto – como uma barreira ao livre comércio. Aqui no Brasil o mesmo argumento poderia ser aduzido através de questionamentos judiciais por ofensa ao artigo 170, parágrafo único da Constituição da Republica, que também garante o livre exercício de qualquer atividade econômica, o que, inevitavelmente, traria obstáculos ao implemento das punições aos clubes de futebol, inviabilizando as competições em decorrência da interposição de incontáveis medidas judiciais.
A própria UEFA – leia-se Michel Platini – já se manifestou no sentido de que a regra é restritiva e vai contra o espírito da competição, mas seria a opção “menos pior” comparada ao risco de “quebradeira” dos clubes.
(Continua amanhã)
Panorama Tricolor
@PanoramaTri
Muito bom o texto. Aguardo avidamente sua conclusão. Bem, não é o sistema ideal, mas com a tendência clubes -> empresas -> insolvência -> encerramento? Poucas coisas são mais tristes do que a cessação de atividade de um clube de futebol. A situação chegou a um ponto em que, como bem mostrado no texto, é preferível menor mobilidade (engessamento) do que mobilidade suicida (endividamento até não poder mais). Dois fatores contribuem. O primeiro é bem típico do futebol que é mais vale…
O primeiro é bem típico do futebol que é mais vale ganhar hoje do que pensar na conta de amanhã. O segundo é complexo e resultante exatamente desse endividamento dos clubes que a FIFA tenta limitar: os bilionários de origem duvidosa que se apoderam dos clubes a caminho da bancarrota e, que como tudo em suas vidas de negócio, utilizam esses mesmos clubes como base, fachada e cobertura para negócios com seu dinheiro pessoal.
Sobre o Brasil, o país que cunhou o termo “contabilidade criativa”, a contribuição depois do 4x3x3 será uma modalidade negocial qualquer que ao abrigo de seu sistema legal terceiro-mundista contorne a situação. O tempo cozerá o ensopado no caldeirão de Macunaíma. Acrescento que o Fair Play Financeiro em terras tupiniquins nem com imposição da FIFA seria alcançado, pois as quotas da televisão (leia-se Globo) e os patrocínios das empresas públicas estão aí para favorecer e desequilibrar.
Não duvido disso, Mauro. A cada nova norma, novas brechas legais surgem. Vários aspectos do FFP precisarão ser repensados, além, é claro, de adaptados à realidade nacional, para que não se torne medida inócua. Além disso, a participação do Estado será fundamental para responsabilizar o mau gestor civil e criminalmente. Um abraço e ST
Vc disse tudo:” Nisso somos mestres” . Estou na linha do Dupont. Nao e congelando todos que vai se solucionar o problema. No Brasil ficaria feliz num orgao fiscalizando tres pontas: Atraso de salarios, pagamento de tributos ( incluindo o INSS) e dividas com outros clubes.Se esses aspectos forem obedecidos ja sera um grande passo no futebol nacional. No entanto urge melhor distribuicao dos recursos da midia aos clubes.
Se esses três aspectos que você citou fossem efetivamente fiscalizados, realmente o avanço já seria enorme. As brechas na lei, porém, são muitas e, para o FFP funcionar efetivamente por aqui, será preciso adequar-se à realidade nacional, observar alguns aspectos específicos dessa realidade, além, é claro, da responsabilização não apenas dos clubes, mas de seus gestores, papel que cabe ao estado. Amanhã continua. ST