I
Minha mãe alugava três quartos, a fim de ajudar no custeio das despesas. Como o apartamento era bem localizado, nunca tivemos dificuldade em mantê-los habitados. Que me lembre, os inquilinos eram sempre cordiais e trabalhadores. Não tínhamos preferência quanto a gênero, ao contrário da maioria que alugava somente para pessoas do sexo feminino. Em função do alto custo de vida, a fazer disparar o preço dos aluguéis, a procura por quartos era cada vez maior. Poder-se-ia pensar que vivíamos numa cidade, cuja população resolvera abandonar seus imóveis, refugiando-se em quartos. Pagavam-se menos impostos, fugia-se dos condomínios e evitava-se a chateação com as faxineiras. Muitos, inclusive minha mãe, embutiam no preço do aluguel o café da manhã. De maneira que terminei por me acostumar àquele bando de deserdados, que talvez tivessem, como ponto em comum, uma existência mais livre e mais solitária.
II
Estavam sempre em trânsito. Um, dava aulas de matemática para o segundo grau. Esqueci seu nome. Falava pouco. Viera do interior a fim de prestar o concurso para o magistério e, como passara, o máximo que seu orçamento permitiu foi um quarto nas imediações do trabalho. Raramente recebia telefonemas e pouca informação fornecia-nos sobre a família, a cidade de origem e seus gostos pessoais. O quarto em que vivia, não tinha fotos, nem computador, nem TV. Sobre a mesa de estudo, alguns livros de matemática. A maior parte do tempo, permanecia de porta fechada, o que servia para nos vedar completamente o acesso à sua vida privada. Era calvo e usava óculos. A timidez, talvez, lhe fornecesse a forma encontrada para se resguardar. Procuro lembrar seu nome, mas até isso ele conseguiu me fazer esquecer. Um dia, como entrou, saiu. Não permaneceu três meses. Não sei porque fui me lembrar dele agora, quando tantos outros me foram mais presentes.
III
O apartamento, além dos cinco quartos, tinha uma sala, onde ficava a televisão, permanentemente ligada. A partir das seis horas da tarde, começava o longo cortejo de novelas e noticiários. Dois quartos, além do meu e de minha mãe, tinham um bom tamanho. Um terceiro, minúsculo, era a dependência de empregada e minha mãe também o alugava.
IV
Segundo ela, as despesas, na manutenção do apartamento, eram altas. E os recursos, como professora aposentada, parcos. Ainda tinha as despesas com a minha educação, o que não lhe sobrava outra opção senão alugar os quartos. Acho que além dessa explicação, havia outras. Era sovina. Lembro-me da dificuldade em conseguir-lhe alguns trocados para ir ao cinema, ao futebol ou sair com as namoradas.
Mas o que profundamente a inclinava na direção dos aluguéis, era seu desejo de manter a casa habitada. O que depois veio a se transformar no vício de conhecer sempre novos inquilinos. Não lhe agradava manter os mesmos por muito tempo. Não só porque resistiam ao aumento dos aluguéis, como também porque a impediam de conhecer novas pessoas. Dentro de sua autoridade, à qual efetuava com esmero e prazer, havia um desejo frívolo, quase inconsciente, de conhecer gente.
V
Tinha também os estrangeiros, se bem que todos o eram. Vinham do mundo inteiro. Segundo os critérios, muito pessoais de minha mãe, esses tinham prioridade em relação aos nacionais, em razão de apresentarem um grau de estranheza, tanto maior quanto mais exótico fossem. Dentro desses, tinha o subgrupo dos exilados.
Ela era uma. Apareceu-nos numa tarde, indicada por um inquilino que já tinha estado entre nós. Falava uma língua que mais parecia uma algaravia. Acostumamos a nos comunicar por gestos, ainda que essa nova linguagem trouxesse o risco de mal-entendidos.
Do que se depreendia dela, continuava no meio da guerra – a mesma que a fizera deportar. É que por mais longe que possamos estar, sempre trazemos conosco nossa casa.
VI
Alugar quartos é manter a porta de casa permanentemente aberta ao exterior. Uns vinham chegando, outros saindo. Um fluxo permanente, contínuo, no meio do qual, me via só, entre um eterno entrar e sair. Acho que, de todos, foi a ele por quem mais me apeguei. Chamava-se José Lino.
A arquitetura de alguns prédios, entre os quais, o nosso era um exemplo, permitia que, num mesmo apartamento, um quarto fosse visível a outro. Quando não se usava o recurso da cortina, ficavam completamente devassados.
Ou porque Zé Lino não demonstrasse importância de se manter preservado de olhares alheios, ou porque simplesmente esquecesse de fechar a cortina, o fato é que, todas as noites, avançando madrugada à dentro, eu o via entretido a escrever sob a luz de um abajur. Era uma disciplina férrea: não havia dia que não o visse no mesmo horário de sempre. Eu posso rememorar cada movimento de sua face, a sua mímica patética… às vezes, surpresa; outras, uma expressão de esgar. Em certos momentos, deixava o papel sobre o qual se debruçava e ia consultar um livro. Era Fluminense doente, assim como eu.
VII
Mas acho também que não devo mais adiar o que parece fundamentar essa sucessão de imagens, muitas vezes desconexas e impossíveis de se ligarem umas às outras, pelo menos à primeira vista.
Seu nome era Lúcia. Lembro-me, vendo-a entrar com as bagagens pela primeira vez e se alojar no quarto que fora ocupado por Lino. Eu contava nessa época com dezesseis anos e vivia o êxtase da adolescência. Com todos os meus parentes a morar longe da capital, a minha família era minha mãe e aquela sucessão de pessoas.
Foi grande o espanto que senti ao conhecê-la: os cabelos loiros e lisos até a altura dos ombros; a pele de porcelana; o frescor em cada um de seus movimentos. Era impossível disfarçar, em sua presença, o ar desajeitado que eu sempre assumia diante de mulheres bonitas.
Eu não podia suspeitar de nada, muito menos minha mãe. A simpatia de Lúcia para conosco era também um limite que nos empunha. Sabíamos dessa linha limítrofe, além da qual, seria temerário ultrapassar. Foi a essa distância que me acostumei desde a tenra idade: ainda que muitos hóspedes dormissem de portas abertas, uma distância imaginária nos separava.
VIII
Um dia, a vi de relance diante do espelho. Acho que se aprontava para sair, como fazia todas as noites. A porta estava entreaberta, de maneira que, por uma das frechas, pude surpreendê-la. Como eu tivera a visão de passagem, fiquei a remoê-la cada minuto depois. E acho que, até hoje, é o que mais me atormenta.
Diante do espelho, seu rosto estava coberto por uma pasta branca. Seu cabelo era negro e curto. Estava entretida no que fazia e a sua expressão, refletida no espelho, trazia uma vacuidade, própria de quem olha ao longe. Parecia disposta a prender alguma coisa que lhe fugia. Mas, ainda assim, se mostrava perseverante e disposta àquilo a qualquer preço. Ao alcance de suas mãos, uma parafernália de cremes, perfumes e cosméticos de toda espécie. Com uma das mãos, colocava os cílios postiços, enquanto, no canto direito da penteadeira, a sua peruca loira refletia-se com intensidade.
Não era ela, era ele. Talvez tivesse ela percebido, naquele instante, a porta entreaberta, porque escutei a fechá-la e o ruído da chave na fechadura… Foi aí que, aproveitando a ausência de minha mãe, concebi um plano que, para ser efetuado, exigia a cópia da chave de Lucía. Como não tive dificuldade de encontrá-la, voltei à sala e me postei diante do televisor. Enquanto isso, rememorava cada detalhe da imagem. Não era ela, era ele. O detalhe das mãos, as suas costas, o rosto bruto e masculino.
IX
Ao sair do quarto, Lúcia teria que cruzar a sala para alcançar a rua. Não demorou muito e a vi novamente: exatamente como da primeira vez que a conheci. Tentei depreender em sua rápida passagem, alguns dos traços que havia antes surpreendido pela porta entreaberta. Mas foi em vão. Nada fazia lembrar o outro. Nenhum transeunte poderia imaginá-la homem, tamanha a perfeição de suas formas femininas. Quando ela bateu a porta, pus-me de pronto a executar o plano, arriscando a ser surpreendido com a chegada de minha mãe. Eu não via a hora de abrir as gavetas e passar em revista tudo que pudesse denunciar sua identidade. Ao abrir a porta, o negrume do quarto fez-me procurar o interruptor. Mas antes que o alcançasse, alguma coisa no quarto me chamou a atenção. Então, franzi os olhos e, diante do espelho, a percebi. Era ela. Acho que o meu primeiro movimento foi no sentido de abandonar o quarto imediatamente, mas algo me prendia. Nunca vira alguém tão linda. Ela e a penteadeira estavam sob o foco de luz, enquanto o resto do quarto permanecia às escuras. Era como se, finalmente, a metamorfose tivesse dado lugar. Seu rosto, refletido no espelho, era o rosto que ela própria procurava, quando a vi pela frecha da porta. Agora mesmo, dá os últimos retoques, reforça o batom nos lábios, põe o cabelo pro lado… mas é inegável que sua obra está concluída.
X
Fechei rápido a porta e pus a chave de volta ao lugar, sem que minha mãe pudesse desconfiar. Muitas vezes, fui tentado a dividir com um terceiro essa estranha experiência, mas acabei preferindo o silêncio. Certas coisas são incomunicáveis, tamanho o poder que têm sobre nós.
Quando minha mãe morreu, vendi a casa. Mas a trago comigo todos os dias.
Panorama Tricolor
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Imagem: sky