Um Fla x Flu é a soma de muitos Fla x Flus (por Paulo-Roberto Andel)

Num país com a vocação da desmemória, que sequer lembra de seus mortos nesta peste em que vivemos, não dá para não concordar: o mais que centenário jogo de futebol entre Flamengo e Fluminense é uma das expressões mais marcantes da vida brasileira, justamente porque mantém a memória viva. O passado, o presente e o futuro andam de mãos dadas a vida inteira quando o assunto é o encontro dos dois gigantes.

Pouco importa se o capítulo de logo mais parece pouco empolgante: no Fla-Flu sempre há o que se guardar e admirar.

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O clássico mudou a história do então Distrito Federal e, por consequência, da República. O Rio, bonito que ele só, era também a cidade dos silêncios, de muitas calçadas vazias e pessoas solitárias caminhando apressadamente com semblantes até tristes. Foi o Fla-Flu que inventou a multidão, assim ensinou Nelson Rodrigues, o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos.

Os primeiros grandes clássicos foram nas Laranjeiras e na Lagoa, até que chegaram ao Maracanã monumental, aquele outro, e dos anos 1950 a 2010 foram uma festa só, com grande destaque para os anos 1970 e 1980, com públicos gigantescos e muitos craques em campo.

Há mitos e lendas sobre o Fla-Flu, alguns nem sempre edificantes, outros com tempero de besteira mesmo. Por exemplo, as mofadas teses racistas contra o Fluminense caem por terra quando um dos mais populares e importantes artistas negros do país, Pixinguinha, alcançou o sucesso nacional e internacional quando fez carreira no Salão Nobre das Laranjeiras há cem anos. Pinheiro, Denilson, Escurinho, Assis, Waldo, Washington, heróis tricolores, são todos negros. Leandro, Zico, Tita, Dida, Sávio, Lico, símbolos eternos do Flamengo, são todos brancos. Mas o importante é reconhecer que os dois clubes, rivais até o infinito, incorporam as figuras do leão e do tigre andando lado a lado numa calçada de Nova York, como diria Tom Wolfe.

Um Fla-Flu tem sempre muitos Fla-Flus em jogo e não se limita ao estádio ou às manchetes a priori ou posteriori. Mexe com a cidade, o estado e o país, por mais que os jornalistas bairristas insistam em rechaçar o fato. O Brasil fica atento ao jogo, de olhos arregalados ou de esguelha. Enquanto a partida é disputada, milhões de televisões são ligadas, celulares são manuseados e, quando a TV não é possível, os bons e velhos radinhos de pilha se multiplicam nas portarias dos prédios, nas biroscas e mercearias, nas áreas populares e nobres da cidade do Rio de Janeiro.

O mundo mudou, a pandemia exige a reclusão – pelo menos dos sóbrios – e o futebol não pode ter torcida presente. Mesmo antes da Covid19, nem todos os clássicos tinham o público que a história merecia, mas houve um tempo em que o Fla-Flu colocava cento e vinte ou trinta mil pessoas no Maracanã em qualquer circunstância. Os trens da Central vinham abarrotados de gente humilde sonhando com uma hora e meia de alegria, misturadas no contraste colorido rubro-negro e tricolor. Ainda falando em rádio, quem se lembra dos sinais das estações ecoando em toda a arquibancada nos dez minutos finais do clássico? Era de arrepiar.

O Fla-Flu alça anônimos ao estrelato definitivo em um instante. O menino Alexandre, que fez o gol da vitória tricolor de 1993, é matéria de jornal neste domingo, 28 anos depois. Paulo Goulart defendeu o pênalti de Zico em 1979 e todos se lembram até hoje. O massacre rubro-negro do primeiro tempo em 1982 foi marcante, mas teve o troco com um gol de Amauri no último minuto, num Fla-Flu vazio – o que ninguém podia sequer imaginar é que no ano seguinte Assis faria a mesma coisa. E se falarmos de Nildo, Dirceu, Rudinei, Rever, Luiz Marcelo, Rodriguinho, Botinelli e tantos jogadores que marcaram presença no clássico, poderemos voltar no tempo e lembrar de Barthô, que decidiu o primeiro Fla-Flu em 1912 com um placar que marcaria o clássico para sempre: 3 a 2.

No Fla-Flu até o empate é uma vitória eterna. O Flamengo comemora o 0 a 0 de 1963, que lhe deu o título – e Escurinho acertou o travessão. E o Flu celebra com justiça o 2 a 2 de 1941, um campeão presidido pelo goleiro campeão Marcos Carneiro de Mendonça. Não teve nenhuma cera com bolas chutadas na Lagoa: Roberto Assaf, emérito escritor rubro-negro, já desmentiu a lenda em livro. Sergio Britto, o grande ator, foi ao jogo e não viu nenhuma catimba. Tenho gravado.

Nunes fez gols dos dois lados, Pedro também. Thiago Neves também, mas ficou marcado pelo créu. Gerson, um dos maiores da história, se emocionou ao enfrentar seu clube de coração e se contundir justamente num lance contra seu ídolo, Castilho, em 1960. Cláudio Garcia, ídolo tricolor, mergulhou na fogueira ao trocar de lado em 1983. Jason tentou mas não deu liga. Bobô tentou e conseguiu. E tome Carlos Alberto Torres, Doval, Renato, Toninho, Zé Mário, Mário Sérgio, Paulo Cezar Lima.

Nelsinho, uma fera, mandou na Gávea nos anos 1960 para depois ser o técnico tricolor do grande 1980 – ano da última crônica de Nelson Rodrigues. Seu parceiro Carlinhos, o Violino, sempre ficou do lado de lá. O Edinho era nosso, foi contra a vontade e voltou rapidamente. Carlos Alberto jogou por meio mundo mas não passou por lá. Rivellino, só nosso.

Logo mais tem Fla-Flu no Maracanã. Não tem torcida mas tem bandeira. Os dois times pensam na Libertadores e vão a campo sem a força máxima. Roger estreia à beira do campo pelo Flu. Não importa a realidade: o fato é que tudo pode acontecer. Num jogo que dá o que falar há quase 110 anos, este domingo promete uma hora e meia de olhos pregados na TV paga, ouvidos nos radinhos e um pouco de bálsamo para aliviar a vida tão sofrida.

Aguardemos mais um episódio do jogo que nunca termina. De toda forma, sou mais Flu, tal como nos últimos cinquenta anos em que perambulo pela Terra. Só vai faltar meu pai me puxando pela mão na descida da rampa. É, não se pode vencer todas.