Sábado passado, como todos sabem, comemoramos 21 anos de um dos maiores Fla x Flus de todos os tempos, aquele decidido pela barriga de Renato Gaúcho. Não é sem razão a celebração da partida e de seu desfecho extraordinário. Foi um jogaço em todos os sentidos: o verdadeiro (ou seja, o antigo) Maracanã lotado, o Brasil inteiro mobilizado, dois times com perfis muito distintos, dois treinadores fanfarrões, craques em ambas as equipes. O jogo em si teve 5 gols, o primeiro de Romário contra o Flu, quase uma virada espetacular do Flamengo (porque o empate era deles) e, finalmente, a revirada com a barriga.
Agora, por mais espetacular que seja o Fla x Flu daquele 25 de junho de 1995, não é possível reduzir a importância do jogo à barrigada de Renato, ao desfecho improvável que deu a vitória no jogo ao Fluminense. Nosso time não ganhou ali apenas um jogo, ganhou um campeonato estadual que não conquistava desde 1985 e que só viria a ganhar outras 3 vezes desde então (a Ferj explica por que, perguntem lá ao Rubinho). Aquele Fla x Flu foi, portanto, o ponto culminante e a interseção de muitas histórias espetaculares, algumas das quais posso lembrar agora.
Em primeiro lugar, como sempre se recorda, o campeonato foi preparado pela mídia para ser mero protocolo das comemorações pelo centenário do Flamengo. O urubu montou uma ótima equipe. Para começar a conversa, trouxe do Barcelona ninguém menos do que o maior jogador do mundo do ano anterior, Romário, juntou a ele uma série de outros grandes jogadores, como o nosso ídolo Branco e Sávio. Colocou esse time na mão de um dos grandes técnicos brasileiros da época, Luxemburgo, e assim se declarou campeão por antecipação.
Nós montamos um time de operários, liderados por um craque que todos julgavam acabado. O craque era Renato, como todos sabem, mas o time não pode ser reduzido a ele. O Flu tinha, por exemplo, uma dupla de volantes que ainda hoje seria considerada moderna: Marcio Costa e Djair. O primeiro era um compridão, bom zagueiro, mas também bom volante, porque tinha habilidade e excelente passe. O segundo era um monstro, lento é verdade, mas espetacular com a bola nos pés. Tivesse Djair jogado nos anos 1970 e seria um desses craques eternos da seleção.
Nosso meio era completado por dois incansáveis jogadores: o predestinado Aílton e Rogerinho. Se a dupla de volantes era meio lenta, os dois à sua frente preenchiam os espaços do meio campo, multiplicando-se. Não eram craques, mas também não eram ruins, sobretudo Aílton. O mais importante é que completavam a diferença entre o jogador comum e o craque com litros de suor. Futebol não é só habilidade com a bola nos pés e era bonito ver a entrega de nossas formiguinhas em campo.
As laterais ajudavam muitíssimo o time. Lira, na esquerda, era um grande jogador, serviu à seleção. Se não teve uma carreira mais longeva ou espetacular, isso se deve mais aos seus rompantes de descontrole emocional do que a qualquer outra coisa. Bola tinha para ter voado mais longe. No outro lado, nosso grande tricolor Ronald era um lateral honesto, que infelizmente chegou ao clube já com 27 anos (se não me engano). Tivesse Ronald começado mais cedo numa equipe importante, como a nossa, teria possivelmente desenvolvido muito seu bom futebol.
A zaga tinha uma formação clássica: Lima, xerifaço nordestino, e Paulo Paiva, bom zagueiro que trouxemos do Bangu. Ao longo do campeonato, Lima mostrou grande capacidade ao parar Romário nos quatro Fla x Flus que disputamos. Para quem não lembra, ganhamos 3 vezes do Flamengo no campeonato e empatamos apenas o primeiro. Tenho certeza de que, hoje, o senhor Lima tira a maior onda com os amigos sobre sua performance naquele certame, em que atuou contra o maior jogador do mundo.
O gol não tinha um goleiro promissor que, infelizmente, o Fluminense não soube aproveitar, desenvolver. Wellerson fez um ótimo 1995 no Flu e nada mais. Depois apareceu apenas naquele episódio lamentável da champanhe, que manchou nossa reputação para sempre. Mas reduzi-lo àquele episódio é sacanagem com alguém que vestia a camisa do Flu com muito orgulho, que é de fato tricolor, que fez o que pôde, como pôde, pelo Flu.
No ataque, além de Renato, tivemos a última aparição de Ézio com nossa camisa. Escrevi recentemente sobre ele, mas nunca é demais lembrar que se trata de um ídolo do clube. Estava mal aquele ano e, por isso, revezava com Leonardo, jovem jogador que, não sei por que, não teve uma carreira mais brilhante, porque parecia goleador por natureza, além de ter técnica relativamente boa.
No banco estava o grande Joel Santana. Não confundam Joel, técnico retranqueiro, mas eficiente, com Joel, fanfarrão ator de comerciais. Sei que Joel é incompatível com o futebol de hoje, porque apenas misturava uma preocupação defensiva com formação de grupos fechados. Mas quando o Brasil tinha craques de verdade em campo, isso era realmente importante, porque as vaidades eram muitas e as defesas fracas. Joel tem sua participação na história do nosso futebol e, ademais, é uma figura humana fantástica.
Esse time de operários, trabalhador mesmo, fez um campeonato com a cara do Flu. Para ter uma ideia, entramos no octogonal que decidiria o certame com 3 pontos menos que o Flamengo, e chegamos a estar a 8 pontos do líder. O Fluminense deu à palavra superação outro sentido na arrancada final para o título. Papamos os clássicos, atropelamos os pequenos e deixamos prontinho o cenário para o desfecho do jogo final. Ao longo do percurso, é difícil saber quem teve mais raça, o time ou a torcida. Quem esteve nas arquibancadas e gerais aquele ano tem história para contar, pois foi tão decisivo para a conquista quanto os próprios jogadores.
1995 não foi só uma barriga. Tivemos ali um fenômeno espetacular: a alma tricolor encarnada em jogadores e torcedores. Fomos a ressurreição de Renato, a emoção radiante de Ézio, o brilho efêmero de Leonardo, Lima, Ronald e Wellerson, a virilidade de Lira, a predestinação de Aílton. Fomos apenas um, sem grandes divisões no clube ou na arquibancada, embora formados por muitos que estivemos em todo lugar desse estado cuja população carrega nosso nome. Que 1995 tenha sido um último suspiro de vida antes do mergulho no abismo, isso é outra história. Mas que aquele estadual representa muito de nossa história, de nosso caráter, isso sim representa. Que se celebre a barriga, mas também o resto do corpo e a alma tricolor.