SEJA LUZ PARA O LUIZ. COLABORE.
Na última vez em que o Fluminense estava na véspera de uma decisão após quase uma década sem títulos relevantes, eu era um garoto de vinte e poucos anos, com o mundo pela frente, sonhando com uma vitória fenomenal. Dormi, acordei, fiquei tenso, almocei, deixei meus pais em casa e, horas depois, voltei para casa com o maior título de todos os tempos.
Era o Fluminense, era o Renato, o Lira, o Super Ézio para nos salvar no segundo tempo. Era Lima e Sorlei, Rogerinho, Wellerson. Djair.
O tempo escorre num estalar de dedos e cá estou eu na madrugada depois de um dia triste. Já é quarta-feira, já é decisão Fla x Flu, a terceira seguida. Perdemos as duas últimas de maneira sem graça, sem torcida, coisas da pandemia.
Estou muito longe de ser um garoto mas o sentimento é o mesmo. Por ora, não quero saber de nenhum mau caráter do universo do clube. Somos eu e minha conexão direta com o Tricolor, é o que basta. Quando o jogo começar, volto a ter dez anos de idade, Edinho arranca para o ataque e o Flamengo que se encolha. O Zezé cai pela esquerda, Deley ajeita no meio. Já que é sonho, dá pra fazer com Pintinho, Gerson e Rivellino?
Cadê minha nuvem de pó de arroz?
O Fluminense que eu amo, que vem sendo refém de tanta gente má, mesquinha e estúpida, é o mesmo Fluminense capaz de se reinventar e sobreviver, porque é muito maior do que todos os seus traidores juntos.
Aqui somos eu, a noite, a longa noite, a decisão. Se fosse racionalizar o processo, eu diria serenamente: temos tudo para levar uma porrada, um soco no queixo daqueles que leva à lona, um socão do Mike Tyson. Só que não é assim: na história desse clássico de logo mais, já aprontamos poucas e boas. No próprio domingo vivemos isso: levamos uma surra mas passamos no corte final, na última nota.
Eu não tenho mais a mesma certeza de um garoto indo para o Maracanã em 1995, nem em 1984, nem em 1973 ou 1969, mas as velhas cores estão lá. Seu Armando está lá. Antonio e Zezé estão lá. O Careca, que me dava medo. A Tia Helena. Estão todos lá de algum jeito. O João Carlos, divertido mas com a cara bem amarrada. O Gomão. O Flavão. Luiz e Raul, pequenininhos. Leo, Marô, Rita. Doria. Tanta gente.
Meus botões.
Meu pai me puxando pela mão. Talvez todos os nossos melhores momentos juntos foram por causa do Fluminense, falando do time, indo pro jogo. Eu o velei durante aquele jogo inesquecível da Libertadores contra o São Paulo.
Minha mãe, que era Flamengo de araque e virou Fluminense pra me fazer feliz.
A Chocôncia.
Tem muita coisa em jogo. Milhões de tricolores, que vão dos endereços mais badalados aos logradouros mais humildes, passando por trens, vans, táxis, burrinhos sem rabo com o nosso escudo, camisas esgarçadas e encardidas, vestes humildes, escudinhos de papel barato, botões de panelinha, chinelos. É tudo muito maior do que dirigentes emergentes de merda, empresários picaretas e ex-jogadores sugando o que resta da teta.
Nosso treinador parece alguém perdido na Floresta Amazônica sem smartphone e bússola. A se confirmar, a escalação será a mesma que ainda não ganhou um primeiro tempo sequer. Nosso melhor jogador está de fora. Vamos pro jogo com um goleiro que talvez, talvez, tenha dificuldade de visão noturna para os mais otimistas. Temos um dos melhores armadores do país mas jogamos sem armação. Isso te parece a receita de um nocaute?
Não parece. É. Mas temos uma carta na manga: o Fluminense tem tanta vocação para desafiar definições e ser a mosca na sopa, mas tanta que não será surpresa se mandar todas as obviedades pro cacete, obtendo uma vitória imortal.
Eis a corda bamba em que vivemos: bater ou apanhar. Diz o imaginário popular que ganha a briga quem bater primeiro.
Parece incrível, mas já estivemos numa roubada ainda maior. Trinta e seis do segundo tempo, setenta mil flamenguistas urrando pelo título supostamente assegurado, a gente sentindo o bafo dos gritos do outro lado da arquibancada, cada minuto passava em vinte segundos. Era 1995. Eles nunca tinham sido tão campeões antes da hora quanto naquela tarde. Eu pensei em ir embora, mas fiquei tão sem forças que acabei ficando e, por isso, fui testemunha ocular do maior gol de todos os tempos. Sei que aquilo só se vê uma vez na vida, mas quem pode me proibir de sonhar?
O Fluminense agora é meu pai sentado na poltrona com seu radinho, é minha mãe com seu sorriso lindo, é meu irmão calado olhando o campo e as jogadas. O Fluminense não é toda a minha vida, mas é a maior parte dela, uma grande parte.
Romerito, que ajudou a escrever algumas das maiores páginas da história desse clube, acaba de encarar meio dia de estrada no ônibus para torcer com a gente. De algum lugar do infinito, Assis e Washington andam juntos a caminho do Maracanã – o leão e o tigre lado a lado na calçada.
Minha cabeça rolando no Maracanã.
No fim, tudo está contra, mas nunca fomos tão Fluminense. Que venha o jogo. Que a lógica sucumba perante o sonho.
Em memória de Carlos Roberto Guedes