Na historiografia é lugar comum dizer que os vencedores escrevem a história e cabe ao historiador desenvolver uma memória a partir daquilo que “a sociedade quer esquecer ou apagar”. Quando destacamos o caso brasileiro, a coisa se potencializa ainda mais, afinal, estamos falando de um país que traz consigo uma série de lacunas, que transversaliza do genocídio da população indígena, escravidão forçada de negros vindos da África e vinte anos sob um regime ditatorial, onde tortura e desaparecimento eram rotina. Apesar dessa nossa história abominável, a peculiaridade é que qualquer tentativa que buscasse reconstruir uma memória crítica a esses períodos, incluindo, reparações históricas, foram massacradamente sufocadas e assim o continuam.
Um breve passeio pelo Centro do Rio de Janeiro e uma curiosa pesquisa nos nomes das ruas e monumentos, lá estão: bárbaros e genocidas que massacraram nossos antepassados, seja através das pilhagens, assassinato em massa, estupros, torturas e toda maldade comum ao modus operandi de cada período histórico onde tal classe dominante determinou os rumos de nossa terra. Já os resistentes, os indignados, pouco espaço, tiveram.
Uma dessas figuras resistentes é Marcos Carneiro de Mendonça. Nascido no interior de Minas Gerais, em Cataguazes, no dia 25 de dezembro de 1894. A data é emblemática, mas diz muito sobre sua potência enquanto ser humano. Apesar de ter nascido no famoso “berço de ouro”, Marcos Carneiro aproveitou da sua condição privilegiada para intervir num Brasil desigual, seja no âmbito social e também na condução patrimonial. O seu 1,87 m de altura arrancava suspiro das torcedoras em Laranjeiras, mas sua companheira em toda vida foi Anna Amélia Carneiro de Mendonça, uma das primeiras dirigentes do movimento estudantil do Brasil, responsável pela licitação da Casa do Estudante e apenas a primeira presidente da história da recém fundada União Nacional dos Estudantes, além de liderança feminista reconhecida internacionalmente através da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Assumia ainda o posto de uma das maiores poetisas da história do Brasil, Anna Amélia era uma torcedora fanática pela Fluminense e profunda conhecedora do jogo, algo que transpareceria em suas poesias, a primeira literatura do Brasil a tratar sobre o tema, enquanto a intelectualidade literária pouco se importava com aquele esporte que o “povão brasileiro” aprendeu a amar.
Essa relação de companheirismo era, logicamente, transversalizada por discussões políticas e de produção cultural para o país. Como não recordar do famoso evento em 1942, quando Marcos Carneiro de Mendonça era presidente do clube, que culminou numa passeata organizada pela UNE contra o fascismo e que culminaria na compra do avião “Coelho Netto” pelos associados e doado para a FAB. Assim como a formação de uma equipe de enfermeiras para atuar junto a II Grande Guerra, tudo sob a batuta e voluntarismo administrativo do presidente do Fluminense, Marco Carneiro.
Além disso, Marcos Carneiro tinha em seu acervo considerável obras históricas do Brasil e do mundo, com cerca de 11 mil volumes, abertos para visitação e que seriam doados a Academia Brasileira de Letras. Sua percepção na cultura e história, o levou a se tornar membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) onde viria ser grande-benemérito. Sua erudição e conhecimento era legitimada inclusive na academia, destaques a participações em bancas de concursos em várias universidades, como a USP, por exemplo. Era um estudioso de Marquês de Pombal, o controverso iluminista da Coroa Portuguesa, algo que Marcos Carneiro se assemelhava parcialmente, em destaque, o apreço as ideias e ao conhecimento. O ex-presidente tricolor, produziu inúmeras obras e ganhou inúmeras premiações que condiziam a sua paixão pela pesquisa histórica.
Nesse sentido, Marcos Carneiro de Mendonça não era apenas um goalkeeper tricolor e da seleção brasileira, mas uma personalidade que protagonizou uma luta pela cientificidade, pela pesquisa histórica, pelo conhecimento, e pela luta de um país que ousou desenvolver projetos em parcos momentos da nossa história. O “apagamento” de Marcos Carneiro não é uma pura nulidade de um esportista, mas sim, de um homem esperançoso de “dias melhores” para o nosso Brasil.