Laranjeiras e a fábrica de intelectuais negros do futebol (por Felipe Duque)

O Brasil traz em sua mácula mais de três séculos de escravidão, período onde negros africanos eram forçados a atuarem como mão-de-obra em engenhos, lavouras de café e outras ocupações aqui em nosso território, ainda colônia de Portugal. Porém, a abolição de 1888 representou apenas uma formalidade de um temor de rebeliões, a exemplo do Haiti, que colocassem em xeque a estrutura de uma elite branca que transitava para um Brasil Republicano. A abolição não insinuou nenhuma reparação imediata aos ex-escravos e seus descendentes, incitando-os a “progredirem” numa nova sociedade que despontava no XX a partir de diferenças abissais, além do fortalecimento de medidas “estigmatizantes” da cultura negra, em geral, como as teorias eugenistas que culminaram na abominável tese do “branqueamento”, onde a imigração europeia iria “limpar” a sociedade brasileira.

Toda essa trajetória histórica resultou num abjeto processo de um Brasil racista que, embora se pregasse o tal mito de Gylberto Freire da “democracia racial”, nunca omitiu a notável diferença entre a localização de negros e brancos na nossa sociedade, a partir de estáticas que reduzem o primeiro público como alvo para encarceramento e assassinatos. Além dessas questões mais evidentes, intelectuais como Silvio de Almeida emergiram novos debates como a ideia do racismo estrutural, uma reflexão sobre o a estruturação de uma sociedade (a partir de suas questões históricas, culturais e sociais) que privilegia algumas raças em detrimento das outras. A grosso modo, podemos dar exemplo das ditas altas ocupações sempre frequentadas pela branquitude, enquanto a chamada “baixa patente”, os cargos de baixa remuneração e relevância são endereçado aos negros.

No caso do futebol, tal elemento se torna mais evidente. Sabemos que o Brasil é um celeiro de craques e, dada a estruturação do futebol brasileiro, esse esporte acaba sendo a esperança de milhares de jovens localizados em zonas periféricas e comunidades, uma saída “natural” para tirar os familiares da miséria ou precariedade. E os grandes craques, a exemplo do Rei Pelé, trazem a negritude em sua pele, elemento singular do esporte no Brasil (como a NBA nos EUA, por exemplo). Porém, a questão mais fundamental é por que os negros assumem apenas a função de jogadores e não como formuladores e representações de cargos importantes nos clubes? A lógica vai encontro à reflexão anterior do racismo estrutural, conforme abordado.

Nesse ponto, o maculado Fluminense (pelas fake news de sempre) traz consigo, em sua história, um ambiente natural de incorporação dos intelectuais negros do futebol. O primeiro deles foi Gentil Cardoso em 1945, um dos maiores técnicos do futebol brasileiro. Naquele período, o apreço aos gringos ou do “bom rapaz branco”, Flávio Costa, eram a preferência dos grandes clubes cariocas (incluindo Vasco e Flamengo). Apesar de ter feito excelentes campeonatos com times pequenos e modestos, o homem negro, filósofo, poeta e literário nunca foi levado em conta. Coube ao Fluminense em 1945 trazê-lo, onde fez uma sonora exigência: “Traga-me Ademir Menezes e os darei o campeonato”. Assim foi feito. Sua sagacidade tática e inteligência em garimpar craques ainda o levaria a apostar em um jovem raquítico que iniciava no Olaria, Castilho. A partir do êxito de Gentil no maior clube do Brasil, o mundo lhe abriu portas, indo treinar posteriormente até o Sporting de Portugal.

O caso de Gentil abriu espaço ainda para Gradim (1954; 1956) e Didi, o príncipe Etíope que dirigiu a Máquina em 1975 e 1976. Porém, nada se compara a “década negra” de 1980. Foi um dos períodos mais vitoriosos da história do clube e onde mais tivemos intelectuais negros da bola à beira do campo, formulando, orientando seus comandados. O primeiro deles foi Nelsinho Rosa, vindo da modesta Ferroviária-ES. No Fluminense de 1980, montou um time de garotos que iria ser campeão carioca. Nelsinho ainda retornaria em 1985 para nos dar mais um título e fechar a trinca 83-84-85. Carlos Alberto Torres, o Capita, não só nos trouxe Romerito em 1984, enquanto esteve cobrindo a parte executiva do futebol (que culminaria no Brasileiro daquele ano), mas também dirigiu o clube campeão carioca de 1984 com o Casal 20.

Como não falar também do grande intelectual, ex-técnico, tricolor apaixonado e um lapidador de craques na base, Pinheiro (1971; 1972; 1977; 1994). Além dele, tivemos Paulinho da Almeida (1982); Luiz Henrique (1981; 1984), o campeão carioca de 1995, Joel Santana (1995; 2003; 2007); Cristóvão Borges (2014-2015) e Vanderlei Luxemburgo (1986-87; 2013).

Na presidência (1993-1996), tivemos Arnaldo Santhiago, responsável por concluir o CT de Xerém e montar o time de 1995 que iria culminar no famoso “Centernada” dos milionários rubro-negros. Todo esse aspecto vanguardista do Fluminense na captação de intelectuais negros para cargos fundamentais do clube só reitera que as fake news, tão difundidas pela mídia e reproduzidas por determinadores torcedores rivais, não correspondem à realidade.

Sob a batuta do mestre Marcão, o Fluminense, mais uma vez (como outras dezenas de vezes) torna-se o único clube do Brasil com um intelectual negro à frente do seu plantel. Enquanto a moda é o estrangeiro, o Flu opta pela solução caseira. Desejamos um excelente trabalho para o treinador e ídolo da torcida tricolor.

O Deus de Ébano tricolor carrega a esperança de milhões de torcedores tricolores na reta final do Brasileiro

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