Gosto de ver o Fluminense sempre representado nas esferas populares. É uma maneira de contradizer a velha opinião que trata o Flu como um objeto de elite, não de forma elogiosa mas claramente depreciativa. Ao contrário do que sempre é apregoado na imprensa convencional, somos povo, comunidade, favela, subúrbio, trem. O nosso time é grande demais para caber apenas na Zona Sul da cidade, ainda que a nossa história tenha nascido e pulse permanentemente num dos mais charmosos bairros da região. Ah, claro: também somos garbo, luxo, elegância, tradição, tudo isso representado pelos belíssimos vitrais franceses da sede imortal.
Ontem estive na Cidade de Deus para um debate – que, na verdade, foi uma tremenda aula – com amigos queridos e pessoas que há muito admiro de longe (agora, de perto, mais ainda). A vida não anda fácil e claro que ir lá continha alguma preocupação depois de dias de luta e de polícia à solta. Mas botamos o pé no acelerador e fomos na moral – eu nasci para realizar e participar de equipes. Quem lê este PANORAMA sabe.
Chegando à CDD, acabamos entrando numa rua errada, sem saída e, claro, nos deparamos com uma das inúmeras bocas que funcionam num lugar cheio de vida e em muitas outras coisas, boas e más. Até aí, nenhuma vantagem ou o contrário: moro a 200 metros da Secretaria de Polícia Civil, a 600 da Acadepol, a 700 do Batalhão de Choque e isso não impede o estabelecimento de várias bocas na região, na rua mesmo. A turma não estava com armas à vista, demos meia volta e fomos absolutamente ignorados. Garotos, garotos mesmo, escravizados pela “opulência do mercado” – jovem mão de obra descartável para posteriormente engrossar as terríveis estatísticas da violência. Diria o mestre Saldanha: “Vida que segue”.
Vinte metros depois, perto de um excelente campo de futebol soçaite (que deve render altos jogadores ignorados pelos gatunos travestidos de empresários), dois garotos perto de uma birosca, conversando. Talvez uns dez ou doze anos de idade para cada, magriços. Um com uma bola de borracha debaixo do braço e o outro com uma camisa do nosso Fluzão, pouco importando se é pirata porque este é um assunto de ampla discussão. Parecia uma versão infantil do Orejuela. Por alguns segundos tive alívio: no mesmo espaço em que se vê a juventude vencida pela guerra do tráfico, também se encontra o amor ao clube e a paixão pelo futebol, este maravilhoso esporte que, no Brasil, vem fazendo tudo para ter cada vez menos adeptos e admiradores. Uma breve e maravilhosa imagem de resistência tricolor.
Dois minutos depois, chegamos à sede de Os Arteiros, centro de cultura da CDD com teatro, vídeo, literatura, uma espécie de Factory carioca. Outros garotos brincavam de descer num descampado ali perto com um colchão, como se fosse um tobogã. Lá estavam o escritor Vitor Almeida (Suburbano da Depressão), o ator Fernando Barcellos (anfitrião, diretor de Os Arteiros), os queridíssimos escritores Ernesto Xavier (nosso orgulho do PANORAMA) e Elika Takimoto (que escreveu conosco “2014: o espírito da Copa), além da mediação da jornalista Flávia Oliveira (que é linda, simpática, articuladíssima como já sabemos da TV, com uma bagagem continental de informações e uma simpatia avassaladora, tudo exatamente ao contrário dessa meia dúzia de pretensos “formadores de opinião tricolor”, o que também é outra evidente lição). Duas horas de aula sobre a produção cultural do subúrbio, o caos da cidade e do Brazil, tudo muito mais. Aprendi muito.
Saímos da CDD umas nove da noite, tranquilamente. No pequeno percurso até a Estrada do Gabinal, procurei pela rua o garoto tricolor. Já estava tarde, sabia que seria difícil revê-lo, mas não tem problema: a imagem ficará para sempre. Aquela surrada camisa do Fluminense era uma espécie de grito em meus delírios sentimentais, algo como “Nem tudo está perdido, pode haver a paz, há o Fluminense”, e tudo isso numa situação para cachorro grande mesmo, onde a arrogância covarde de tuítes e pôstis não tem vez.
Finalizando: o Tricolor tem uma enorme torcida popular, espalhada nas Zonas Norte e Oeste do Rio, que precisa ser resgatada. O Maracanã só viveu cheio quando o trem trazia as massas populares para o estádio, e hoje ele anda mais vazio do que de costume em tais ocasiões. A ausência dessa turma maravilhosa explica os indesejáveis buracos na nossa arquibancada – e eles já haviam ficado de fora desde quando assassinaram a geral, no distante 2005.
PS: procurem por Os Arteiros nas redes sociais e no Google. Vale a pena mergulhar na cultura de cabeça. É CDD, rapá!
Panorama Tricolor
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Imagem: cezar guedes