Estou calmo. Não deveria, mas estou. Depois de tantos anos sem um título, veio este último jogo que acabou se tornando uma grande decisão.
Eles são melhores? Não sei. Podem ter jogadores melhores, sem dúvida, mas futebol não se resume a isso.
Saio cedo, pouco depois do almoço. Vou encontrar o pessoal no Maracanã. Vai chover. Vai ser lindo.
Queria que meu pai estivesse comigo. Ele vai ouvir de casa. Está cansado. Eu entendo. Ele viu Didi, Waldo, Escurinho, Samarone, a Máquina inteira. Fico triste mas entendo. Ele tem direito à folga. Sente dores.
O 434 nem está cheio, sequer intranquilo. Desço na lateral da querida UERJ, atravesso o canal, logo entro e subo com a turma. Uma rampa que sempre me dá a alegria de menino. Direita, volver.
Achamos lugares tranquilamente, entre a grade da Tribuna de Honra e o escanteio. Veio uma turma da pesada: Luiz, Homão, Flavão, Dória, Raul, a mãe dele, a irmã e mais gente. Depois vai lotar.
Nossa arquibancada é linda. Quanto somos: 40%, 35%? Não importa. Grito de lá, grito em dobro daqui. Nosso lado está ocupado, eles estão bem imprensados do lado de lá, a geral e as cadeiras são deles. Só que não ganha jogo. A torcida é deles, o empate é deles, o jogo é deles, o campeonato todo foi deles, mas hoje é o último capítulo e não estou disposto a perder de novo.
Cem mil corações apaixonados pelo sonho da bola e sinto no peito os versos de Chico Buarque: “Minha cabeça rolando no Maracanã”.
[Ai-Jesus
Deu zebra. Somos melhores, jogamos melhor. A promessa de chuva é um dilúvio. As camisas no campo brilham de suor e água. Fazemos um gol. Eles sentem. Fazemos outro gol, eles sentem. Somos imortais! Fizemos dois a zero, eles estão perdidos. Bem, esse placar costuma ser enganoso. Estamos felizes mas sabemos que ainda falta muito. Do outro lado eles estão muito irritados.
[Queremos raça! Queremos raça!
Demos um banho de bola. Ninguém esperava.
Comemos cachorro quente e bebemos coca cola no intervalo do jogo. Sorrimos. Será que hoje é dia de ser campeão?
[Chove
Tudo é breve, todos ligam seus radinhos, o sinal ainda ecoa debaixo da grande marquise de concreto. Vai recomeçar.
Administramos bem por algum tempo. Então o árbitro marca uma falta de longe. Vem outro verso de Chico Buarque: “É desconcertante rever o grande amor”.
[Que porradaço no travessão!
Escapamos, mas uma bola botou fogo no jogo. Gol deles. A massa explode em fúria e tesão. A gente que conhece futebol sabe que, quando está dois a um faltando tempo para o fim do jogo, é sempre mais fácil o derrotado igualar do que o vitorioso ampliar. A gente corre, a gente luta, facilidade não há. Briga de buldogues.
[Porrada. Um de cada lado pra fora
[Pense em Tyson no auge lutando com Muhammad Ali no auge: virou luta de peso pesado com doze assaltos
Não deu outra: gol deles. Golaço, com drible. Fulminante. Merda. Empataram. Vão ser campeões se o resultado persistir.
Pouco mais de quinze minutos para acabar, 70% dos nossos 35% dão no pé, não ao vice de novo. A minha turma se dispersa. O Gomão permanece. O Doria tem certeza de que o final vai ser outro. Estou inerte, sonhando com doze anos antes, um gol no último instante, quem sabe?
Damos uma porrada horrível. Caceta. Nada a reclamar, expulsão justa. E agora?
Quem sabe um super herói possa nos salvar? Epa, nós temos um. Soltem-no em campo, deixem-o viver.
Os caras não param de gritar e pular do outro lado. A gente sente o bafo de longe e retruca. O eco nos esbofeteia. Não é fácil. Davi contra Golias.
[Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas
Eles dão um balão de novo. A gente retoma de novo e insiste. Dos pés do super herói a bola vai para a direita, um dos nossos toca para o segundo, e este encarna um Garrincha inesperado, dá dois dribles e uma porrada.
[Um segundo para o fim do mundo
[Que porradaço no gol!
[Três a dois
[E foi gol de barriga, mermão!
O Carnaval vira Ghiggia 1950. Atônito, olho para o bandeirinha e ele corre para o meio de campo. Foi gol, caralho! Abraço meus amigos por perto. Pessoas rolam nas arquibancadas elameadas. Pessoas se abraçam e se beijam. Dez degraus abaixo, um senhor ajoelhado de uns setenta anos grita “EU VIVI PARA VER ISSO!”.
Do outro lado, um silêncio de vinte e cinco mil cemitérios.
Falta pouco. Bem pouco. Hummm! Damos uma porrada horrível. Outro pra fora. O terceiro. Assim não dá. Oito contra dez?
Eles chutam, nosso goleiro pega. Eles chutam, nosso goleiro tira com o pé. Eles chutam, a gente corta de qualquer maneira. São minutos de desespero e êxtase, mas se fossem horas acho que eles não conseguiriam mudar o destino. E milhares de torcedores retornam às arquibancadas – eles tinham ido embora, mas ouviram a voz da vitória e retornaram – no caminho da volta, encontraram os pré-vitoriosos num mar de lágrimas em nome da derrota linda e cristalina.
Não sei como estou tranquilo. Na verdade acho que estou paralisado. Não sei o que fazer. Esperei tanto tempo por este momento que, agora, ele se aproxima feito um lindo avião na Baía de Guanabara prestes a tocar o piso do Santos Dumont, do mesmo jeito que a bola nas alturas desce para beijar o gramado, mas ainda tememos pelo desfecho em vão.
A bola desce, o árbitro apita, o jogo termina. A multidão de maníacos admiráveis invade o campo sagrado e abraça a quem vier pelo caminho.
Nossos jogadores choram ajoelhados. A gente chora abraçado na arquibancada. Derrubamos o muro que nos separava da glória. Do outro lado, ainda lotado, eles aplaudem muito. Sabem que foi um momento único.
Somos imortais. Ganhamos o jogo dos jogos. Eu queria que meu pai estivesse ali, meu irmão também. Depois entendo que era tudo uma missão: ver o maior filme de todos os tempos.
Estou paralisado por tudo o que vi e vivi nesta tarde que virou noite. Hoje eu entendi o que era felicidade, hoje eu experimentei o que no futebol é amor. Vi paixão, drama, romance, aventura, desastre, salvação e um final feliz que vou carregar para sempre comigo.
Desço a rampa e me lembro de quando eu era uma criança. Aquele sentimento persiste: continuo perseguindo o meu escudo, as bandeiras coloridas, o céu de talco, os sambas de arrepiar. Eu amo o futebol, eu amo o meu time, eu amo este jogo que jamais vai acabar.
Um dia eu vou escrever um livro sobre isso.
Em memória amorosa de Ézio Leal Moraes Filho.
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Muito obrigado a todxs que me passam força, apoio e abraços por conta de meus esforços literários pelo Fluminense. Gostaria de agradecer a todo mundo, um por um. Na impossibilidade, gostaria de sintetizar todos os abraços no nome de Mauro Jácome, que tem sido um fiel parceiro neste PANORAMA e em livros comigo. E também de Zeh Augusto Catalano e Leonardo Prazeres, figuras essenciais na minha vida, além de Marina Andel.
Para sempre: Maria de Lourdes Andel, Hélio Andel, Jeferson Andel.
Não foi nada fácil chegar até aqui, mas não posso negar: é um prazer enorme. Tenho recebido muito amor nestes anos de trabalho em prol do Fluminense, e tento manter a recíproca.
Escrevi duas mil páginas sobre o Flu sem pedir nada a ele que não fosse a sua existência. Graças a ele me tornei um escritor publicado e, também graças a mim, ele é um dos líderes da bibliografia de futebol no continente.
Muitas vezes, sofri agressões gratuitas, injúrias, maledicências e boicotes de pessoas que infelizmente usam o Fluminense para se promover, lucrar ou até mesmo pelo mais pobre dos sentimentos, a inveja – se não a praticassem, ninguém as notariam. Mas até a elas eu agradeço, pois me ajudaram a escrever mais e mais e mais até que, quando olhei pelo espelho do retrovisor, elas simplesmente ficaram para trás, muitas milhas atrás.
Tem sido uma experiência humana enorme, pela qual sou muito grato. Nada disso me deu fama, dinheiro ou confortos, mas algo que é impossível de se comprar: FELICIDADE, com todas as letras maiúsculas.
Temos passado dias muito difíceis com tudo que aí está, mas vai passar. Quem disse isso foi o maior de todos os escritores da história do Fluminense, Nelson Rodrigues, ao nos deixar a eterna lição de que tudo passa, mas só o Fluminense jamais passará.
Que o clube retome seu caminho genuíno: o da imortalidade.
Panorama Tricolor
@PanoramaTri @pauloandel
#credibilidade
#Andel1000
Parabéns, Andel. Mito da crônica tricolor!
Meu querido Andel!
Também estive nesta final histórico.
1000 colunas, que marca é está?
São 1000 histórias, opiniões, compartilhamentos.
Quem tem que agradecer somos nós, Tricolores.
Obrigado por tudo que fez e com certeza ainda fará por nossas três cores. Estou no Face contigo também.
Sinta-se recebendo 1000 aplausos, 1000 abraços, 1000 beijos fraternos.
Que venham outras 1000.
Vida longa à você e ao PANORAMA.
Você me representa. Se cuide!
Andel: Adaury, meu abraço e apreço. Obrigado pelo apoio. Há muito a ser feito. Tudo de bom aí.