Fla-Flu (por Paulo-Roberto Andel)

cristóvão 1979

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Os bancos de praça no entorno do Maracanã, nunca mais. Humildes vendedores de laranja, refeição cobiçada pela turma da geral, a descascada mais cara, todos de plástico azul no chão, nunca mais. E o cachorro quente da carrocinha?

Meu pai me dando a mão na hora de comprar o ingresso, ali mesmo, ou minha mãe aflita em casa enquanto não voltávamos do jogo, nunca mais. Logo hoje, minha mãe, mesmo sabendo que o dia das mães deve ser celebrado 365 vezes a cada ano.

Fred revoltado com o gol do Assis e Xuru rindo muitomesmo sendo vascaíno, nunca mais.

Dúvida entre Moisés e Ademilton? Paulinho no gol ou o veterano Renato? Miranda era Trésor? Reinaldo “Ratão” na ponta direita é perigo na certa para nós. E o Cristóvão deixando o Manguito no chão, hein?

Quem sabia que Andrade e Adílio jogavam demais também tinha noção de que Edevaldo era um cavalo, Edinho era um monstro, Delei um gênio. Trazendo para hoje? Mário com a camisa 10 da seleção. Zico, craque, nunca deu a volta olímpica derradeira contra nós. Rubens Galaxe, ainda a ser devidamente valorizado, cansou de contornar o campo com a taça.

Se Ary Barroso e Jorge Curi esgoelaram-se para valorizar suas cores do coração, Chico Buarque e Gilberto Gil deram o troco direitinho em forma de poesia. Para quem não gostou, aquele abraço. É preciso falar de Nelson Rodrigues? Creio que não.

Poucas pessoas foram mais precisamente poéticas do que George Harrison: “All things must pass”. Todas as coisas devem passar. As importantes ficam para sempre no mundo da abstração. Outras, não. Todas, todas, todas passam.

Mas o Fla-Flu é a força que nunca seca. Nós e eles. Mais de cem anos nos ringues da vida. Alguns, maravilhosos; outros, terríveis como a história oculta de dezembro de 2013; afinal, muita libra já pesou. Mas não se mede a estrada inteira por um ou três ou seis pontos dela. Prefiro os velhos tempos e cantar “Recordar é viver/ Assis acabou com vocês”.

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Pouco importa se somos favoritos. O que você acabou de ler ou lerá nas manchetes mofadas de hoje trata do eterno favorito contra o esforçado coadjuvante. Mas essa megalomania com finalidades comerciais e, por sinal, escusas, nada tem a ver com o povão maravilhoso que escreveu nas arquibancadas a história do principal clássico do futebol brasileiro, por inúmeros motivos. Uma coisa é o Flamengo, outra é a Fla-Imprensa; se alguns torcedores realmente acreditam pelo noticiário que Hernane seria melhor do que Fred, o problema está nos mares rasos que podem navegar em termos de reflexão. Por essas e outras que um monte de gente se une do nosso lado logo mais. A turma das redações gosta de chamar debochadamente de arco-íris. Alguém disse que era uma vingança (imprópria) de Renato Maurício Prado. Pensando bem, faz sentido.

No momento, somos melhores. O que é pouco. Não basta ser melhor para se ganhar o Fla-Flu. É preciso muito mais: alma, coração, pulmão, suor, muito tesão. Que assim seja do nosso lado. Oxalá o carnaval aconteça.

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Meus heróis? O goleiro Paulo Goulart, o zagueiro Edinho, o cracaço Cláudio Adão. Benedito de Assis. O garoto Alexandre em 1993.

Renato Portaluppi, 25/06/1995.

Lembram daquela bomba de voleio do Conca – aliás, o grande aniversariante deste domingo – sem defesa? Os gols do Fred no centenário em 2012? Cavalieri pegou pênalti.

Esteja onde estiver, o monumental Ézio.

E nunca é demais lembrar de Amauri: em 1982, Andrade caiu sentado, ele tocou para o gol, vencemos por 1 x 0 aos 45 e disse adeus. Era o prenúncio de anos monumentais a seguir, mas ninguém tinha a menor ideia. Eu era um garoto de treze anos na geral, feliz da vida: pulei, cantei. No meu bolso, uns trocados. No horizonte, todo um futuro.

Podem colocar Rodriguinho, Roni, Luiz Marcelo e outros na lista. Quem marca em cima deles tem respeito eterno.

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Até aqui, misturei lembranças, alegrias e saudade com certo deboche que me é peculiar. Mas agora eu falo sério.

Sei a grandeza do Fla-Flu. Sei do respeito que exige. Do outro lado também sabem, senão nem falariam tão mal de nós. Vejam o grande documentário do cineasta Renato Terra e entender será fácil demais.

Por isso, escrevi as linhas abaixo, publicadas na página 62 de “Duas vezes no céu – Os campeões do Rio e do Brasil”, publicado em 2012, também já repetidas aqui no PANORAMA. É um livro de crônicas dos jogos daquela temporada. A seguir, o único texto que não tratava de uma partida, mas sim do aniversário de 100 anos do Fla-Flu, que fiz questão de publicar justamente pelo meu respeito.

O Fluminense, o Flamengo e um espelho

“Você não é meu inimigo. Não, você não é meu inimigo. Não foi nem nunca será. Deixemos de lado as rusgas daquele ano tão distante, quando éramos unha e carne até que o ventre fosse rasgado e parisse a história de nossos dias. Foi um desentendimento que, ingenuamente, trabalhou em prol da posteridade. Caminhamos e muito por uma longa estrada, você de um jeito e eu de outro. Não, não demos as mãos em tom fraternal ou de namoro, pois não faria sentido algum; quando nos tocamos, foi em impecáveis quedas-de-braço, palma contra palma e, nem sempre, quem venceu num dia foi melhor do que o derrotado, tudo para alimentar o calor da disputa. Sim, eu sou melhor do que você. Não, não sou pior do que você. Não, não sou igual a você. Temos nossas características próprias, nossas nuances, os pequenos e grandes detalhes que nos distinguem à primeira vista: cores, gestos, sonhos, atos, maneiras. Não somos irmãos siameses, mas nosso sangue é comum, temos mais semelhanças do que parece ser plausível. Nossa verdadeira vocação é de adversários: vivemos de confronto, de oposição, nossas arquibancadas são diferentes. Um é especial no somatório das lutas, o outro é especial quando as lutas valem medalha de ouro. Ambos temos multidões, verdadeiros continentes de gente que não cabe no estádio. A opulência de oitenta e nove minutos contra a maestria do minuto final. Um é o maior do mundo, o outro é o maior da cidade, os dois são da mesma cidade e essa saudável contradição remete a boas reflexões: como ser o maior do mundo sem dominar a própria cidade? Como ser o maior da cidade onde há o maior do mundo? Não, não é hora de indagações e questionamentos profundos ou rasos, mas sim o momento de celebrar, comemorar, experimentar a vida. Olhar para trás e pensar em tudo o que passou. Dos pequenos teatros da Gávea e da rua Guanabara, chegamos ao garbo de São Januário e depois ao colosso do Maracanã. Agora temos a singeleza do Engenhão. Quantos riram, choraram, viveram e morreram por conta das nossas cores? Quantos experimentaram os mesmos sentimentos, sendo humílimos ou milionários, velhos e moços, todas as cores de uma mesma raça, quando nossas cores se encontraram na esperança em verde num gramado? Quantos trouxeram admiráveis lembranças de nossos encontros em suas infâncias e hoje, perto da despedida, relembram cada passo como se fosse o melhor de suas vidas? Por pior que fosse, sempre reconhecemos a beleza que vimos do outro lado da arquibancada quando gritaram o gol. E o nosso gol a seguir teve um sabor especial. Muitas vezes, o grená esmurrou o vermelho enquanto o preto chutou o verde, tudo sob o olhar atento do branco. E brigamos, brigamos muito. E choramos e sofremos. E rimos e fomos felizes. Lá se foram cem anos e vivemos com toda intensidade, um ardor que poucos sentimentos explicam melhor do que o de um jogo de futebol. Quis o destino que Nelson Rodrigues fosse irmão de Mário Filho e isso, sem dúvida, quer explicar algo hermético e profundo que até hoje não soubemos decifrar. Somos sangue do mesmo sangue e, a cada encontro nosso, algo diferente parece inundar as retinas de quem olha o outro lado, as outras cores, os outros brados – nossas procissões são diferentes, específicas mas, de algum modo, rumam para o mesmo destino. Houve um dia em que as multidões despertaram e nunca mais cerraram as pálpebras. Houve um dia em que nosso encontro virou chacota num jornal, mas esta mesma chacota se tornou nossa marca eterna: Fla-Flu, uma corruptela que ganhou o mundo. Sim, eu sou teu adversário e quero te vencer sempre. Sim, você é uma pedra firme no meu caminho. Sim, eu sempre te provocarei mesmo que tudo seja apenas passageiro e desimportante, pois a importância cabe à nossa construção diária. Não, eu não existo sem você. Não, eu não existo sem você. E agora, te dizer “Obrigado por tudo” significa trocar o mais fraterno dos abraços, pensar em cem anos de saudade e num milênio que nos espera à frente. Obrigado, muito obrigado por tudo, muito obrigado por existir e também ser protagonista desta história. Significa agradecer a mim mesmo. Sem você, eu teria um desgosto profundo e isso ofuscaria o grande amor que tenho pelo querido pavilhão. Hoje, não há mais dúvidas: nós somos a história. Um dia, cem anos serão dois mil milênios. Só o Fla-Flu regenera, só o Fla-Flu revigora, só o Fla-Flu veio antes do nada para chegar até muito, mas muito além do infinito.”

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Eu ainda procuro os bancos de praça em volta do Maracanã, assim como as laranjas.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem: Placar

“Pagar o quê?” em Rio das Ostras, 07 de junho. 

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