Alguma coisa já acontece no meu coração.
Aquele gol do Cristóvão. Aquela defesa do Paulo Goulart.
O cruzamento errante do Zé Teodoro que o garoto Alexandre cabeceou tão bem na virada. Wendel, Renato, Paulo Goulart, Paulo Victor. Zezé Gomes e Valtair. Cantarele usava verde ou azul. Leandro era craque demais. Mozer foi quase nosso. Zico também – ninguém fala hoje. Diziam que Romerito ia para lá, mas tudo foi balela.
Andrade, craque, tropeçou e Amauri não titubeou diante do Maracanã vazio. A geral era silêncio.
Muitos anos depois, o grande gol de Edmundo, no finzinho, como reza a nossa camisa.
Antes, doeu ver Edinho querendo voltar pra gente e tendo que assinar com eles. Depois ele voltou e fomos felizes. Jason passou por lá. Zezé. Paulinho. Paulinho. Robertinho. Adão. Neves. Moisés. Toninho. Roberto. Rodrigues Neto. Gérson. Telê Santana. Evaristo de Macedo. Gente demais. Literatura? Nelson Rodrigues e Mário Filho. Arthur Muhlenberg e João Marcelo Garcez.
Assis contra Raul, Zinho contra Ricardo Pinto. Zinho e o adeus numa tarde de Preto Casagrande. O sem-pulo do Conca. Bruno cabisbaixo depois do gol de falta, o que só entenderíamos mais tarde.
É claro que o barulho deles é ensurdecedor. Quem viveu aquele Maracanã sabe do que falo. Não foi à toa que Renato consolidou o maior jogo da história: setenta mil urros contra nós. Acontece que o nosso também é, porque tem acordes de uma história de grandes vitórias quando preciso.
Guerra, guerra e guerra nos cânticos, nos choros, na emoção, nas jogadas disputadas e nos gols inesquecíveis. Uma guerra dos cem anos condenada à eternidade. Fora do campo, toda guerra é estupidez. Precisamos de paz. Chega dessa idiotice que traz dor, pânico e mortes apenas porque pessoas gostam de um time de futebol. Um não existe sem o outro – ou é possível torcer sem adversário a enfrentar? Não sejamos estúpidos, o mundo já é cruel e selvagem demais.
Fla-Flu era uma corruptela com o objetivo de vulgarizar. Acabou se tornando a marca registrada de cores que se agridem e beijam, caçoam e trocam abraços. A velha imprensa calhorda sempre quebra a cara. No fundo, sempre foi assim.
Agora mesmo, a propaganda que fizeram é engraçadíssima: campeões do mundo, pré-campeonato. Levemos com a leveza que cabe, é divertido. A graça do futebol numa vida chata que não tem muita graça. No fundo, sempre foi assim.
Do mesmo jeito que nos impuseram certa aristocracia em nosso peito – sim, a temos – não, não com empáfia, racismo e exclusão! – e precisamos aguentar: hoje em dia, a palavra “elite” serve para ridicularizar quase tudo e não somos poupados, lógico.
Já falei noutras vezes: o maior do mundo não é o maior da cidade e vice-versa. Eles querem a Via Láctea, a Guanabara já é nosso sorriso e só os megalômanos acham tão ruim. No resto, ninguém liga: seja num jogo de botão, game, quadra de salão, praia, Aterro, várzea, o diabo a quatro, Fla-Flu é Fla-Flu. Somos guerra e paz. Fla-Flu: guerra e paz, na verdade paz e amor.
Eles cantam o hino com toda força, mas tiram algumas oitavas na hora do Ai-Jesus. Que craque o Lamartine! Pixinguinha fez a introdução da melodia. Já o nosso é o único gigante do Rio que tem a palavra “amor”. Faz sentido.
Ary Barroso e Jorge Cury puxaram tudo para o lado de lá da arquibancada. Garotinho deu o troco depois. Não se pode esquecer do Januário na TV, menos ainda o Canhotinha.
O primeiro Fla-Flu com esse novo Maracanã. O primeiro Fla-Flu do resto de nossa eternidade. Siameses rabugentos condenados a orbitarem um ao outro atrás da estrela Vega ou do segundo sol de Nando Reis.
Não tem mais geral, carantonhas, cachorro-quente Geneal, vendedores de refresco com uniformes de astronautas. Charanga. Pó-de-arroz? Preliminar às três da tarde, cem mil pessoas para qualquer parada, pizza na Bella Blu às oito da noite. VT do jogo à meia-noite na TVE.
Raul, Leandro, Marinho, Mozer e Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Lico, Nunes e Tita.
Paulo Victor, Aldo, Duílio, Ricardo e Branco; Jandir, Delei e Assis; Romerito, Washington e Tato.
Roni e Magno Alves. Chiquinho e Baroninho. Tadeu e Edinho. Rondinelli e Manguito. Wellerson foi um monstro. Uidemar também. Zico contra Zezé Gomes no placar, lembram? Ave Super-Ézio. Créu. Preguinho, Welfare, Marcos Carneiro de Mendonça, São Castilho.
Cheguei até aqui pensando em trinta e cinco anos. E também pensando no jogo de amanhã como se fosse o primeiro. A primeira vez. Não deixará de ser. É tudo diferente, pois. O primeiro Fla-Flu da nova era, as indescritíveis e eternas cores do embate. Marina vai cuidar de mim com carinho feito minha gata de chocolate pessoal e intransferível. Caldeira será um irmão ao lado. E Leo? Carlinhos vai gritar como nunca. Celso. Campinho. Do resto, Deus sabe.
Onde está o irmão vascaíno Xuru que certamente ficaria conosco para secá-los? E João Carlos? O alvinegro Chacrinha, que nem o o jovial veterano Xuru de guerra? Que tal um abraço no Bruno Pacheco, que fica do lado de lá? Ou do Thiago Passos, que não tem lado algum, mas que viu o Fla-Flu de 1995 como a estação primeira do futebol?
Quero ver Fernanda, Bruna, Isabela, Lari, lindas. Meu poema de bailarina? Ah, Juliana! E pensar na beleza da Mariana na outra arquibancada? Não se pode vencer todas.
Que fim levou minha vida de menino? Onde está? Bem à tua frente, irmão: eu sou o Fla-Flu e vim te carregar comigo do início até o fim, da vida à morte e muito além da morte e da vida. Quem disse que a história para num caixão? Mesmo com o novo concreto, Nelson Rodrigues nunca vai estar tão vivo quanto amanhã nas cadeiras do estádio-irmão.
Intacto, só o amor. Nenhum arranhão sequer, nenhuma ruga.
Nele, nada mudou feito fosse mística de sete anos.
Guerra e paz são unha e carne: a tradução literal do amor.
E isso é tudo.
Panorama Tricolor
@PanoramaTri @pauloandel
Imagem: “Guerra e paz”, Cândido Portinari, 1952-1956
Pro Garcez