Nota: Esta coluna seria publicada ontem, dia 07/07, aniversário dos 102 anos do Fla-Flu. Entretanto, a perda de Assis foi o motivo para adiá-la, dado que não havia o menor clima para qualquer celebração. De toda forma, ela também é uma justíssima homenagem ao eterno Carrasco.
I
“Eu sou a mosca que pousou em sua sopa/ Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar”
(Raul Seixas)
II
Eu sei muito bem o que você está pensando.
Não adianta esse discurso oco de nação ou de melhor das galáxias, senhor supremo do universo das ciências curtas e apagadas.
É somente uma tentativa de maquiar tuas fraquezas.
É tudo pose.
Sou capaz de ler teu pensamento com os devidos pesadelos no hangar da alma: aquela caminhada elegante e maldita do Assis, a cabeçada fulminante, o 3 x 2 de 1969 com Flávio. Aquele voleio do Fred.
Não precisamos falar do gol de barriga, não é verdade? Tem livro, TV, jornal e cenas inesquecíveis. Quis comemorar antes, validou a sina.
Quando você arrota empáfia, na verdade quer camuflar constrangimentos. É duro demais tentar parecer o melhor da rua mas receber uma ombrada do moleque travesso que te encara de frente, sabendo a hora das melhores rasteiras. Amauri em 1982 deixou claro o que estava por vir.
III
E você vai falar de segunda divisão mesmo? Entregar os jogos para o Bahia e Corinthians naqueles anos de chumbo foi a indignidade suprema. Melhor não fingir que não sabe o que aconteceu, cinicamente.
IV
A terceira divisão foi a barreira do inferno. Mas passou de estigma para reflexão fundamental: como deve a postura de um eterno vice diante de seu algoz, mesmo este tendo sido temporariamente um time da terceira divisão? Nós só temos uma divisão na alma: a das vitórias.
Falemos deste século e pouquinho como a eternidade palpável.
Há 102 anos, Barthô fazia 3 x 2 e quebrava a garrafa no caco da história.
Há 73 anos, a bola foi parar duas vezes na Lagoa e vocês inventaram a história das bolas zunidas para explicar outra final desperdiçada. Esticaram a Lagoa até a Gávea.
Há 30 anos, Assis foi Assis. Há 5, Roni acabou com vocês.
Os desinformados dizem que a Máquina não venceu nada. Quer lembrar das sarrafadas? Um baile após o outro.
E a rodada 38? Uma papelada portuguesa com certeza, toda amarela.
V
Naquele 1983 maldito você foi sórdido. O golpe de Cláudio Garcia foi inaceitável: onde já se viu ser campeão nas Laranjeiras domingo e trocar de camisa na Gávea segunda-feira?
A vingança foi cruel demais. Abençoada por São Benedito no momento derradeiro.
VI
Aqui vem a última parte ruim desta história: o recalque que você insiste em alimentar nestes dias de Copa porque Fred está a um jogo de chegar mais longe do que Zico sempre sonhou na Seleção Brasileira. Ou fazer chacota de Thiago Silva e Marcelo. Ora, eu respeitei o estático Júnior olhando para a glória de Paolo Rossi, assim como Leandro, quando abandonou a Seleção no embarque para o México.
Somos um país. Cada um com suas cores. A Copa do Mundo é um sentimento nacional. Nenhum fracasso de Fred vai curar a Copa perdida nas mãos de Bats, nos pés de Paolo Rossi ou debaixo do papel picado de Mar del Plata. Romário ganhou o mundo, vestiu a tua camisa, viu de perto o gol de barriga imortal e depois defendeu o charme da nossa torcida. Tenha um mínimo de bom senso, o que sei ser uma façanha se acontecer.
VII
Se você não estivesse do outro lado, o que seria da festa? E do riso? O drama?
Se você não gritasse com toda fúria, como eu poderia fazer piada da tua cara mostrando a solene indiferença?
Se você não ostentasse megalomania noite e dia, onde eu alimentaria as minhas melhores vinganças divertidas?
O que seria dos teus jornalistas efeminados e cheios de faniquitos recalcados sem a minha presença?
Entenda: somos detestáveis um ao outro porque somos complementares. O verdadeiro fracasso nosso está na ausência do outro. Indissociáveis.
E você não tem culpa dos podres poderes que usam a tua imagem para tenebrosas transações. Não mesmo. Usam-te como um laranja de corrupção.
Por mais que você queira ser argentino em plena Japeri, eu sei que o teu amor está em todos os lugares, assim como o meu – a diferença é que você jamais admitirá. Eu sou suficientemente grande para refletir.
Os homens da tua arquibancada ficam loucos com as garotas da minha. E eu faço mulheres das tuas cores encantarem-se por mim para sempre, o que as deixa um tanto desconcertadas. Pergunte a elas se há dúvidas.
VIII
Você tem a megalomania, eu tenho a indiferença.
Você quer ter uma nação, eu me satisfaço com uma linda torcida e o livro dos dias.
Você diz que ganhou tudo porque não gosta dos livros de história. Eu ganho o que posso e os meus escritores inundam as livrarias com poesia. Os teus, com cavanhaques delineados, flatulam palavrões rancorosos. Não briguemos por isso: seria covardia.
Você grita por raça, amor e paixão. Um gol meu e o coro vira silêncio de multidão. Mas eu também não gosto de ver o teu gol. Não pense que eu quero o teu fim: sem você, onde existo? Eu preciso do teu lado cheio, gritando, delirando, querendo aparentar a superioridade impossível.
Você quer ser o maior do mundo. Eu sou a história.
Você quer dominar de ponta a ponta. A mim, basta o último minuto.
E toda vez que nos encontramos, saem faíscas e até pequenos incêndios sem vítimas.
Um dia, você vai entender que o nosso caminho é o do respeito. Quem começou a cisão toda errada foi você. E uma, uma, mais uma, muitas. Assim passou mais de um século, assim será o sempre.
Nelson Rodrigues foi o maior de todos. E disse certa vez que todo mundo já foi Flamengo por um instante. O Velho era matreiro demais; a seguir, vaticinou: “O Fluminense tem a vocação da eternidade”. Marcos Caetano ensinou o caminho do Olimpo.
Então eu te irrito e você me irrita. Mas um sem o outro é um feriado sem sol, dinheiro, família e amores. São nada.
Parabéns, Flamengo desgraçado. Sem você, eu teria um desgosto profundo, ao sol da manhã ou à luz do refletor. Obrigado por existir. E ser a cara metade do Fla-Flu no papel do vilão, claro.
Um século e dois anos. As bolas da Lagoa parecem ter sido outro dia, segundo o grande e saudoso Sérgio Britto.
Panorama Tricolor
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Imagem: chico/ guis saint-martin