Em nome do pai (por Paulo-Roberto Andel)

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“A única coisa que não se pode aceitar em campo é jogador andando, sem raça, sem sangue – gramado onde o Fluminense pisa não é o Parque da Cidade.”

Parece que ouvi isso ontem, mas há um claro indício de que não foi o caso. Os cariocas há muito perderam a noção do que foi o Parque da Cidade.  E, sinceramente, espero que isso não aconteça também ao Fluminense num dia.

Eram palavras de meu pai, Helio Andel. Se vivo fosse, exatamente hoje completaria 73 anos. E provavelmente cuspiria fogo em cima de muita coisa que hoje cerca o Tricolor no campo e fora dele.

“Eu vi Castilho, eu vi Didi e Telê. Não aceito mediocridade com a nossa camisa. Pode jogar mal, pode perder, mas tem que ter garra. Vontade de lutar.”

Era um sujeito engraçado, mas também tinha suas tiradas ácidas. Natural: com onze anos de idade já era um torcedor campeão mundial. Aos vinte, já tinha visto três títulos cariocas e dois Rio-São Paulo, equivalentes ao campeonato brasileiro. Mais ou menos como o cenário recente do Flu, com uma diferença fundamental: naqueles tempos se jogava contra Garrincha, Nilton Santos, Pelé, Dida, Bellini, Danilo Alvim e outros craques fundamentais da história. Com tamanho currículo, sua impaciência para com os patifes do futebol era nula. O que dizer de quem lia Nelson Rodrigues no auge nas crônicas de jornais e revistas esportivas?

Conheci Waldo pelos relatos de meu pai: “Um tanque, uma máquina de fazer gols”. Felizmente agora temos o livro sensacional do grande Valterson Botelho para que acertemos nossas contas com o passado.

Quando Romerito chegou em 1984, ele vaticinou: “A garra desse sujeito está na cara. Basta olhar.”

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Minutos antes de falecer subitamente, meu pai mostrava plena confiança numa vitória sobre o São Paulo que nos levasse às semifinais da Copa Libertadores 2008. O jogo começaria em cerca de uma hora. Não deu tempo.

Depois aconteceu uma das maiores vitórias de todos os tempos.

Foi lúcido até a morte. Despediu-se num dia de triunfo imortal.

Seu último gesto foi me restituir cerca de R$ 300,00 que eu havia lhe emprestado. Voltou para o quarto, caiu e morreu.

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Quando ele começou a me levar aos jogos com regularidade, vivíamos uma entressafra. O Flu sofria as angústias do fim da maravilhosa Máquina e passava a investir em jogadores mais modestos ou dos juvenis.  Entre 1978 e 1980, vivemos uma gangorra: ora grandes jogos, ora apresentações sofríveis.

Em 1979, pela única vez na minha vida, saí de um jogo no intervalo. Clássico contra o Botafogo, o craque Mendonça jogando tudo o que sabia, fizeram 3 x 0 no primeiro tempo. Meu pai me puxou pela mão e descemos a rampa.

“A única coisa que não se pode aceitar em campo é jogador andando, sem raça, sem sangue – gramado onde o Fluminense pisa não é o Parque da Cidade.”

Ainda ouvimos o quarto gol dentro do 464, perto da Cidade Nova. Hoje, perder de 3 x 0 do time reserva do Botafogo chega a causar aplausos de alguns, como se tudo fosse perfeito e belo.

Foram quase três temporadas em que eu esperava os domingos no Maracanã com todo o encantamento que uma criança recém-apaixonada por futebol poderia ter. Depois de tempos difíceis, o Flu foi um grande campeão de 1980, tropeçou novamente e forjou em aço o grande time tricampeão dos anos seguintes. Depois, uma longa e tenebrosa noite, a inesquecível jornada de 1995, os infernos e céus adiante.

Quando o Flu jogava fora de casa, sempre tinha uma partida da base em Álvaro Chaves. Íamos e voltávamos a pé, da Siqueira Campos à Pinheiro Machado. Depois tinha um lanche no Bob´s.

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A partir de 1982, eu já era um jovem torcedor independente do alto de meus treze anos. Comecei a ir sozinho às partidas, inclusive as de meio de semana. E de lá vim até aqui.

Muitas vezes, conversamos sobre futebol. Meu pai sempre foi um crítico contumaz de todas as administrações tricolores, com exceção das dos Drs. Horta e Schwartz por motivos óbvios.  E manteve-se fiel aos seus princípios por toda a vida: a camisa do Fluminense devia ser respeitada por quem a vestisse, não importando se era um craque ou um jogador mediano. Era preciso mostrar serviço com suor e dedicação.

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Em 1978, o Fluminense já era amplamente sacaneado nas manchetes. Em certo momento, O Globo publicava diariamente em caixa a “Novela Marinho”, a respeito da saída do grande lateral-esquerdo titular na Copa do Mundo de 1974 e destaque da Seleção. Claro que o ódio recente por causa da Máquina incentivava a ridicularização do Flu em certos noticiários. A venda do passe do jogador era um prato cheio.

Lembro de meu pai pegar a edição do jornal e dizer “Quero mais é que esse Marinho vá pra &¨%%$#¨&***; não quer jogar no Fluminense, vá *&¨%$#%$¨&*&. Quem é ele pra se achar maior do que o clube?”

Em tempos da Lei do Passe, tão cretina quanto a atual, Marinho provavelmente nem tinha culpa no cartório. Contudo, apesar de cracaço, era um falastrão de primeira. Pagava o preço da língua. Acabou indo jogar no Cosmos de Nova York.

Modesto e sem dinheiro, pouco tempo depois o Fluminense investiu nos juvenis. Na lateral-esquerda, Carlinhos (irmão do saudoso e grande meio-campo Cléber, da Máquina) não se firmou. Rubens Galaxe aceitou mais uma vez ser trocado de posição; eram tempos em que os jogadores ficavam à disposição do clube e não o contrário, mesmo depois de vários títulos conquistados. A resposta veio com o grande time campeão de 1980, que chegou a ceder quatro jogadores para a Seleção Brasileira, numa grande vitória contra o Vasco recheado de craques, sem contar o poderoso maior do mundo que ficou pelo caminho.

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Não estou aqui para determinar quem são os verdadeiros torcedores do Fluminense. Trata-se de uma ignorante petulância que não me cabe nem jamais caberá. Apenas considero que onde não há espaço para a divergência e o contraditório, não há espaço para democracia e respeito.

E onde não há democracia, não há Fluminense.

O que dizer da fidalguia? Temos perdido nosso principal troféu em discussões inúteis, onde sujeitos se consideram os donatários da razão. Enquanto isso, só quem perde com a desunião e a ganância são o clube, o time e a própria torcida. Em vez de entendimento, confronto. Burrice de doer. Com os adversários debaixo da nossa bandeira, para que inimigos?

A poucos dias de começar o campeonato onde sofreremos o maior ataque midiático – e até físico – de nossa história, em vez de nos unirmos em prol do Fluminense, o que acontece é a fratura de seus segmentos populares, manipulada por interesses que nada tem a ver com os das três cores em si, mas sim com razões e benefícios particulares. Fuzilarão o time dia após dia nas redações, estúdios e estádios, mas há quem pense apenas em seu próprio ingresso, num cargo, na estúpida sede de efêmero poder, num trocado, num agradinho ou no que há de mais imundo nas relações sociais, enrustido em conceitos de limpeza étnica.

Por sorte, o bom trabalho de Cristóvão pode prosperar e ajudar em muita coisa, até mesmo num improvável pentacampeonato brasileiro, mas nem isso vai apagar a verdadeira tragédia que hoje se debruça sobre as Laranjeiras: a perda da identidade tricolor. Da solidariedade. Do respeito. Da fraternidade.

Jogadores que acabaram de terminar um campeonato nas últimas posições melindrando o clube? Presidência exercida no gramado? Um Fluminense com Rei-Sol? Retratos da perdição que, por piores que sejam – e são – não chancelam a volta de governos ética e administrativamente abomináveis sob todo e qualquer ponto de vista – basta ler a história. Não são ameaças de porrada e nem a arrogância elitista que resolverão nada. Hora de pararem de olhar para os próprios umbigos – 2013 foi ontem.

Não houve homem na Terra capaz de enquadrar meu pai numa arquibancada em décadas – nem a ditadura cívico-militar lhe dobrou, mesmo na ocasião de sua prisão por defender a democracia no Brasil. Ele vaiou e aplaudiu o que quis, quando bem quis – direitos inquestionáveis.

Pode descansar em paz, meu pai. Eu estou aqui na batalha. E foi com você que eu aprendi que o Fluminense é bem maior do que todos nós, meros passageiros, enquanto a mediocridade das almas há de se dissipar. Sempre foi assim.

Tenho a quem puxar.

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Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

5 Comments

  1. Um belo texto que através de suas memórias com seu pai conta a história do que é ser tricolor de coração.Talvez,seu relato devesse ser lido por aqueles que realmente desejam que a grande do Fluminense se perpetue e não as vaidades que ora rodeiam nosso amado clube.
    Parabéns!
    ST

  2. “A única coisa que não se pode aceitar em campo é jogador andando, sem raça, sem sangue – gramado onde o Fluminense pisa não é o Parque da Cidade.”
    Sem mais.

    S.T

  3. Magnífico, grande Andel! Não há quem possa discordar do seu texto. Ele é fraterno, saudosista, realista, verdadeiro e esclarecedor. Deveria ser emoldurado, em várias cópias, e afixado nas diversas áreas da Sede de Laranjeiras, principalmente na parte interna do alambrado do gramado do campo de jogo.

  4. Andel,

    Nosso Flu está em um furacão. Uma descendente absurda!!!!
    A diretoria parece perdida em seus acordos, justificando falhas a todo momento e sem mostrar efetivamente as atitudes para corrigi-las.
    Somos reféns de muitos algozes…
    O Fluminense é Enorme mas está sendo destruído de dentro pra fora. A “flapress” só ganha importância pela nossa ineficiência, incapacidade e fraqueza.
    E nada muda!
    Nos falta coragem!!! A todos nós! !!

  5. Sensacional, como de costume. Curioso como uma frase dita em 1970 cabe perfeitamente a um jogador em pleno 2014. Seu pai sabia o que falava e concordo plenamente com ele.
    Bjs mil

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