Questão de física
Demorei alguns dias para entender o já histórico gol que, literalmente, fechou o jogo da última quarta-feira. Não me lembro de ter visto, em meu nada desprezível tempo de espectador de futebol, um atacante marcado de perto por três defensores, cercado por três zagueiros, dois dos quais de excelente estatura, superá-los em mais de meio metro, conquistando o espaço suficiente para desferir uma cabeçada forte e certeira, no ângulo. Uma cabeçada indefensável.
Basta pensar em termos da física: considerando, por um lado, que Washington – foi ele o pai da façanha – não se apoiou nos três zagueiros e, por outro, que não tinha espaço para o impulso, como chegou tão alto?
Depois de muito matutar, depois de raciocinar durante dias, depois de estudar o lance, finalmente percebi que não era versado o suficiente nas ciências da natureza para resolver o problema. Contactei, então, dois amigos especialistas, cientistas, físicos de carreira, um dos quais proficiente em aerodinâmica.
Custaram exatas 84 horas de estudos minuciosos, análises pormenorizadas, lançando mão de softwares próprios para escrutinar e prever a dinâmica de objetos com massa, até que finalmente ouvisse o surpreendente diagnóstico científico. A conclusão, embora transmitida em linguagem extremamente técnica, esotérica mesma, pode ser traduzida para leigos pela seguinte sentença: na verdade, Washington não pulou para fazer o gol; foram os zagueiros do São Paulo que se abaixaram para reverenciar o jogador que simboliza, por sua história de vida, o maior time de futebol do país.
Foram os zagueiros do São Paulo que, cientes da obrigação de ter de agradecer ao Fluminense pelo show de futebol exibido pelo menos duas vezes nesta Libertadores (nesta partida e naquela contra o Arsenal), curvaram-se diante do Coração Valente, abrindo-lhe as portas do gol. Humildemente, Washington agradeceu e pôs a bola no seu devido lugar, coroando a sua notável carreira, coroando a espetacular torcida tricolor, coroando o fantástico time do Fluminense.
Um time que conta com um curioso goleiro, que só resolve agarrar nos jogos decisivos, frangando em todos os demais. Um time que tem a maior dupla de zaga de todo o futebol mundial, incluindo o maior zagueiro do mundo na atualidade, Thiago Silva claro. Um time que tem o melhor lateral esquerdo em atuação no Brasil, o pequeno grande Juninho. Um time que tem dois volantes, Arouca e Cícero, que, pela qualidade da bola que jogam, obrigam o treinador a não definir jamais o esquema e o time titular (o certo seria jogar com 12, pois Renato tem verdadeira fixação com o destoante Igor). Um time que tem não apenas um, mas dois armadores extraordinários: Conca e Tiago Neves. Um time que tem Dodô, jogador que dispensa adjetivos e apresentações. Um time que tem Washington, embora Washington não seja jogador de futebol (coisa que muitos ainda não entenderam). Washington não joga bola, não sabe nem precisa saber jogar. Washington simplesmente faz gol, e faz gol decisivo (quem acompanhou a carreira dele sabe quantos foram). Precisa mais?
Fizeram bem os zagueiros do São Paulo. Deram ao Brasil a única chance legítima de ser campeão mundial de clubes este ano. Só o Fluminense tem força para isso atualmente no Brasil. Só o Fluminense pode eliminar o Boca, dobrar o surpreendente Cabañas, vencer a Libertadores e enfrentar a concorrência mundial. Pode perder claro. Mas, se o Boca e os demais tiverem a grandeza de espírito dos zagueiros do São Paulo, saberão reverenciar o grande time tricolor, sagrando-o justamente campeão das Américas e, depois, do mundo.
MARACANAZO TRICOLOR: atestado de grandeza
Não fui eu quem disse. Nem pensei na associação, sequer como metáfora. Mas foi martelado emtodamídia, repetido nos botequins, propagado no boca-à-boca em toda cidade: a perda da Libertadores foi o Maracanazo tricolor.
Confesso que, de início, não compreendi a analogia. Comotodos sabem, o termo Maracanazo surgiu comodescrição do maior fracasso da história do futebol brasileiro: a perda da Copa de 1950 para o Uruguai, numa derrota por 2×1 testemunhada por 150 mil estupefatos torcedores presentes ao Maracanã. Este acontecimento é completamente diferente do episódio da Libertadores. Primeiro, o Fluminensenão perdeu o jogo. Perdeu o título, nospênaltis. Segundo, o Fluminensenão entrou emcampocom nenhuma vantagem, ao contrário do Brasil, que vencia o título mesmo se empatasse (em casa). O Fluminense tinha uma desvantagem expressiva, conquistada com mérito pela LDU no atípico jogo de Quito. Por fim, não foi o maior fracasso do Fluminense em todos os tempos, no Maracanã ou fora dele. Quem já esqueceu que o Fluminense foi rebaixado três vezes, sendo que uma delas da segunda para a terceira divisão? Atenção: TERCEIRA divisão. Como se não bastasse, na estréia da terceirona, o Flu perdeu num Maracanã recheado por mais de 50 mil pagantes para o ABC de Natal. O esquadrão potiguar nos enfiou 3 no primeiro tempo e venceu por 3×2. Se fosse escolher, diria que essa sim é a maior derrota da história tricolor.
Mas, como diriam os ingleses, on a second thought entendi tudinho. A linha de raciocínio que as pessoas das mais variadas procedências, idades, profissões etc. estava trilhando, consciente ou inconscientemente, não era a da comparação entre as duas frustrações na obtenção do título. O que todos estavam e estão percebendo como unidade entre os dois episódios é a sua dimensão histórica. Num caso, trata-se da estréia da seleção brasileira em finais de Copa do Mundo. Estreou com derrota, mas abriu a possibilidade de, duas Copasmaistarde, levantar o caneco. No caso do Flu, foi a estréia em finais de Libertadores (quando conquistamos o mundial em 1952, a Libertadores ainda não existia). Perdemos, mas pelo raciocínio universal, a tragédia alçou o Fluminense à condição de postulante pelo título. Que fatalmente virá, talvez anoque vem.
É disso que se trata: de atestado da grandeza de umclubeque, comonunca canso de repetir, apequenou-se há cerca de uma décadaapenasparademonstrarsuacapacidade de recuperação. A beleza do Maracanã da noite de ontem, a beleza da festa, a beleza do jogo, o impressionante silêncio da derrota são coisa de gente grande, de clube com status de seleção, comporte de seleção. A plasticidade da vitória de ontem (foi sim, o Flu ganhou o jogo e ganhou bem, pelo mesmo placar que já havia enfiado no São Paulo e no Boca Juniors no mesmo lugar) entrou para a história do Maracanã, passando a figurar no rol das maiores partidas do glorioso estádio. Pensem todos com um mínimo de isenção: quem se lembra de ter visto uma festa como a que a torcida tricolor proporcionou na entrada dos times em campo? Quando, na história do estádio, houve um espetáculo como aquele? Nem no show de Sinatra, amigos.
Para os tricolores que estiveram lá ontem, para quem ficou acordado até tarde na frente da TV, para quem ouviu do rádio, pela internet ou sabe-se lá como mais, não fica apenas na memória a perda do título. Ficam na memória a confraternização antes e durante o jogo, o gosto da cerveja, o deslumbramento da festa, a comemoração por cada gol do mais novo craque que o Fluminense entrega ao futebol mundial, a celebração pelas defesas do nosso extraordinário goleiro (o craque da competição, arriscaria afirmar) e mesmo a sonoridade do silêncio final. Que me perdoem os torcedores dos outros times do Estado, mas considero que nossa vitória-derrota vale mais do que todas as suas conquistas juntas. O que ela vale é a certeza da eternidade. Quanto ao título, como disse, é questão de tempo…
Libertadores: objeto de cobiça ou olho que cobiça?
Quando o Fluminense humilhou o Botafogo e conquistou o trigésimo primeiro título carioca de sua história, achei impertinente redigir uma crônica. Nenhum texto seria capaz de realçar a performance de nossos atletas nas duas partidas decisivas, uma performance irretocável e muito distante do que poderia jogar o adversário, com sua equipe infinitamente inferior. Aliás, também pela distância entre os dois times, e entre os dois clubes, preferi calar a pena, para não chutar cachorro morto, como se diz.
Ontem, como todos sabem, o Fluminense foi eliminado da Libertadores pelo Boca Juniors, num jogo decidido pelo adversário aos 45 minutos do segundo tempo. Também não queria escrever sobre o jogo, mas, no primeiro contato com o computador, fui literalmente possuído por uma fleuma espiritual que, após poucos minutos de inconsciência, legou-me o texto que escrevo abaixo.
Já disseram um dia que o Fluminense tem vocação para a eternidade. Também já ouvi dizer que o Fluminense não perde ou ganha; faz história. Ontem, infelizmente, fez história com uma derrota tão imerecida quanto a da perda da Libertadores de 2008. Nas duas ocasiões, a melhor equipe do torneio, não só na primeira fase, foi o Fluminense. Nas duas ocasiões, tivemos pela frente adversários duríssimos e jamais os deixamos com a impressão de que estavam diante de um Zé-Ninguém.
Agimos, em ambas as situações, como se quiséssemos dar uma resposta aos idiotas de plantão, desconhecedores da história, fanáticos por estatísticas superficiais, que exibem sua completa ignorância ao afirmar que o Fluminense não tem tradição em confrontos internacionais. Não ganhamos, é verdade, nem em 2008, nem agora, por uma simples razão: do alto de nossa nobreza, quisemos explicar ao mundo que o melhor nem sempre se sai vitorioso.
Aliás, o melhor não deixa de ser melhor porque perdeu em uma determinada ocasião. Deixa de ser melhor quando é sistematicamente derrotado, quando se torna incapaz de vencer quem quer que seja, quando não se lembra de um feito extraordinário de sua história. Acima de tudo, um gigante só se apequena quando acredita que uma derrota é suficiente para exterminá-lo.
Conosco, isso não é possível. Gigantes que somos, já descemos ao inferno há cerca de 15 anos e saímos dele ainda mais fortes, preparados para fazer história novamente. Nós já fomos provados e provamos, na prática, que somos capazes de resistir aos piores infortúnios que se poderia imaginar. Pergunto eu aos que acham sua história fantástica por ter se aproveitado de nossas fraquezas durante o período de crise: quantos de vocês resistiriam às provações que sofremos? Quantos voltariam ao topo? Quantos fariam crescer a torcida durante a crise, tanto em número, quanto em paixão?
Digo eu: se o Fluminense não ganhou as Libertadores de 2008 e de 2012, pior para a Libertadores. Se eu dirigisse a Conmebol, trataria de criar um expediente para gravar com urgência o nome do time que criou o futebol brasileiro na taça que hoje todos cobiçam, mas que ninguém fazia questão de conquistar 40 anos atrás. Hoje como antes, vale o seguinte: um campeonato que o Fluminense não ganhou ainda só pode ser um campeonato de arbitragens ruins, horários mal organizados, estádios sem condições, violência das torcidas, muitas equipes desqualificadas e deficitário para a maioria dos clubes. Ou seja, um campeonato sem élan suficiente para que a história nos leve a conquistá-lo.
A verdade é que a Libertadores não passa de um torneio Luiz Penido com sotaque esquisito. Não ganhamos ainda, mas eles se organizarão e enfim daremos a eles a honra de nos ter na sua galeria de campeões.
João Leonardo Medeiros
Panorama Tricolor
@PanoramaTri