Dom Obá, o príncipe do povo (por Marcus Vinicius Caldeira)

dom obá

1.

“Axé, mãe áfrica
berço da nação iorubá
de onde herdei o sangue azul da realeza
sou guerreiro de oyó
filho de orixás
vim da corte do sertão
pra defender a nossa pátria mãe gentil
sou “dom obá”, o príncipe do povo,
rei da ralé
nos meus delírios, um mundo novo
eu tenho fé

No rio de lá
luxo e riqueza
No rio de cá
lixo e pobreza

Frequentei o palácio imperial
Critiquei a elite no jornal
Desejei liberdade
Quinhentos anos, Brasil
e a raça negra não viu
o clarão da igualdade
fazer o negro respirar felicidade.

Sonho ou realidade?
uma dádiva do céu (do céu, do céu)
vi no Morro da Mangueira
sambar de porta-bandeira
a Princesa Isabel”

2.

Os versos acima fazem parte do samba da Estação Primeira de Mangueira para o carnaval de 2.000, que tinha como enredo “Dom Obá II D´África – rei dos esfarrapados, príncipe do povo” e foi composto por:Marcelo D´Aguiã, Bizuca, Gilson Bernini e Valter Veneno.

Um samba lindo, uma melodia maravilhosa, um dos sambas de enredo que mais gosto e que toda vez que estou na quadra da Mangueira e este samba toca, entro em delírio.

No ano dois mil ficou determinado que as escolas de samba levariam para a avenida enredos relativos aos quinhentos anos que os portugueses chegaram ao Brasil.

E a escola do tricolor Cartola escolheu homenagear Cândido da Fonseca Galvão, que ficou conhecido como Dom Obá II, o príncipe do povo, durante a regência de D. Pedro II.

Puta escolha.

3.

Cândido da Fonseca Galvão, ou Dom Obá II D´África nasceu em Lençóis no ano de 1845. Foi neto de um soberano do reino de Oyo, (território faz parte da Nigéria, hoje) onde houve uma guerra civil  e toda a família real foi escravizada e seu pai fugiu para o Brasil.

Durante a Guerra do Paraguai, já com vinte anos, se alistou e foi ferido em combate. O imperador, então, lhe concedeu honra de oficia do exército brasileiro.

Fixou-se no Rio de Janeiro e tornou-se uma figura lendária e era reverenciado como se fosse um príncipe pelos negros do Rio de Janeiro. Trajava fraque, cartola e luvas. Se o Fluminense já existisse naquela época diria que torcia para o clube, tamanha elegância.

O que mais chamava atenção além da elegância era a cultura e a inteligência que demonstrava nas audiências públicas que D. Pedro II concedia na Quinta da Boa Vista. Nos debates, defendia o povo negro, bradava contra o escravagismo, combatia os maus tratos no exército, o uso da chibata, a evolução das espécies e defendia a lavoura de exportação.  Muita vezes ganhava o imperador para seus projetos.

Tornou-se amigo de D. Pedro II que o recebia para audiências particulares.

Por isso tudo é considerado pioneiro do movimento negro no Brasil.

4.

De segunda a sexta, há 30 anos, Rubem Confete apresenta (ultimamente em companhia da sambista Dorina) o programa Ponto do Samba na Rádio Nacional AM.

Rubem Confete é outra figura lendária da negritude brasileira, graças a deus ainda vivo, e que por uma daquelas sortes que a vida me deu, tive e tenho o prazer do convívio mesmo que de vez em quando.

Compositor. Jornalista. Roteirista. Teatrólogo. Radialista. Gráfico. Cantor. Ativista e estudioso das questões afro-brasileiras. Mas, acima de tudo, rei negro dos dias atuais cujo reinado é a defesa da cultura negra, sua altivez, inteligência, generosidade e principalmente conhecimento espetacular em relação ao negro, a cultura negra e ao mundo do samba.

No Grupo de Samba de Enredo do qual faço parte, sempre, em qualquer lugar em que toquemos, ao passarmos o som, o fazemos uma música de sua autoria e João de Aquino chamada “Pedra, pé, poeira”.

Hoje, cego, não deixou de produzir e movimentar-se pelo Rio de Janeiro, sendo figura fácil no Armazém do Senado (Gomes Freire com Rua do Senado), e no bar esquina com 28 de setembro onde de noite toma seu drinque.

Seu programa de rádio é imperdível.

5.

No desfile da Mangueira de 2.000, Rubem Confete ajudou o carnavalesco Alexandre Louzada na concepção do enredo. Mais do que isso, representou o próprio Dom Obá na avenida.

Tempos antes do desfile, avisou ao então presidente da Mangueira que os santos africanos tinham solicitado um trabalho para que o desfile ocorresse bem.

Foi ignorado na sua solicitação.

O desfile corria impecável com o sambão contagiando a avenida até que o carro que representava o Palácio Imperial quebrou e arruinou um desfile que tinha tudo para ser campeão e levou a Mangueira apenas a sétima colocação.

Não é bom ignorar os orixás.

6.

O Fluminense ficou estigmatizado por um ser um clube racista, por conta do episódio do jogador Carlos Alberto. Este era mulato, e oriundo do América chegou ao Fluminense. Numa sociedade extremamente racista e preconceituosa à época, o jogador usava pó de arroz para branquear sua pele. Já o fazia no América, mas jogando pelo Fluminense foi que o pó de arroz  se desmanchou e a sua história veio à tona.

Os torcedores adversários caíram no pé da torcida do Fluminense que não se fez de rogada: adotou o pó-de-arroz na brincadeira e até hoje jogamos talco na arquibancada numa das festas mais bonitas de arquibancada do mundo.

O engraçado é que o time racista já tinha jogador negro nos times de 1910 e de 1914, antes mesmo do Vasco. Basta ir na gloriosa sala de troféus do clube e a foto está lá, exatamente como reproduzida aqui.

negro fluminense 1910

Somos o time de elite, mas também de negros, pobres, favelados, gays, travestis, nordestinos, sulistas, dos negros Cartola e  Wilson Moreira e do branquelo intelectual de olhos claros Chico Buarque.

7.

Os negros, por quinhentos anos, foram espezinhados aqui no Brasil. Vieram escravos e mesmo com a abolição da escravatura continuaram escravos, mas de um sistema e uma elite econômica que os alijou da educação, acesso aos bens de consumo e da progressão econômica. e social

Tudo que se tem feito nos últimos anos em termos de políticas públicas para fazer este reparo histórico ainda é pouco. E ainda tem gente que ainda torce o nariz para estas. Se falar em cotas raciais nas universidades para alguns é capaz de irem para porrada contigo.

Na marcha das mulheres negras, quarta-feira passada em Brasília, um dos vagabundos que estão acampados no Congresso pedindo golpe, atirou para cima.

Terrível.

Epílogo.

Salve Dom Obá II d´África. Salve Rubem Confete. Salve Pintinho, Assis, Washington, Carlos Alberto, Didi, Edevaldo, Marcão, Aldo, Ronald, Marco Antônio e tantos outros negros, mulatos e mestiços que vestiram a camisa tricolor.

Salve Cartola, Wilson Moreira, Noca da Portela e tantos outros tricolores negros ligados ao mundo do samba.

Um abraço forte no amigo panorâmico, o mulato (mulato, negro é) Ernesto Xavier.

Um abraço no amigo Carlinhos, presidente da Fiel Tricolor, negro no corpo, na pele, na alma e no coração.

Um alô, ao recém amigo Fagner Torres, blogueiro tricolor da ESPN, representante da raça negra, do qual me tornei um admirador dos seus escritos e da sua conduta.

E não me venha com esse papo furado hipócrita que a raça humana é uma só, que não há corte de raça e coisa e tal.

Há e infelizmente o racismo está entranhado na sociedade escondido no fundo da alma humana. Nos momentos de crise ele aflora.

Cabe a denúncia, a luta e o esforço de cada uma para mudar isso.

Valeu, Zumbi.

Salve o Dia da Consciência Negra.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @mvinicaldeira

Imagem: google/ fluminense/ bahia ilustrada

CONVITE LANÇAMENTO LIVROS BRASILIA azul

3 Comments

  1. Como você misturou samba, biografia e consciência negra; temas que eu adoro, dou os Parabéns pelo texto, ótimo conteúdo. Abs !!’

  2. salve Denilson,o rei zulu.salve Tião macalé.Salve meus irmãos negros e toda a musicalidade de GIL,BENJOR,HENDRIX,MUDDY WATERS,BB KING,MILES DAVIS ETC.

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