Já se passaram vários dias da partida entre Fluminense e Coritiba, que pode ser descrita como a mais importante dos últimos dez anos para a nossa torcida, e somente hoje tomei a iniciativa desta crônica, meus caros amigos. Eu não tenho o talento para escrever sobre o time que amo sem vestígios de emoção; assim, preferi aguardar um pouco para tentar ver de forma mais sóbria tudo o que nos cercou nestes dias e meses de aflição, temor, luta e a valorização de nossa camisa centenária a tal ponto que ninguém duvida: a Gávea pode ter sido campeã, mas ninguém tira das Laranjeiras o posto de grande vencedora do ano.
Era preciso esperar para refletir e entender a grandeza de todo este momento, de tudo o que passamos e conseguimos.
Olhar o passado recente, olhar todos os obstáculos enormes que foram superados e comemorar, comemorar mesmo.
Não importa que não seja uma taça – temos centenas em nossa sala de troféus. O que estava em jogo era a nossa dignidade, e isso ninguém conseguirá rebaixar.
O Tricolor tem a vocação da eternidade, nos ensinou Nelson Rodrigues. E também tem a vocação de subverter todos os maus prognósticos que lhe sejam indicados. Assim se fez a nossa história.
Desta vez, contudo, o massacre da mídia foi tão violento que, num momento, a nossa amada torcida quase desistiu: foi no Fla-Flu. Vínhamos de uma má campanha, mas já era possível perceber tênues mudanças na equipe. E então jogamos a partida contra eles sem nossa torcida, o que nos custou caro: dominamos o primeiro tempo, tomamos o primeiro gol por causa da contusão do nosso valente zagueiro Digão e a derrota aconteceu. A chamada crítica especializada abriu sorrisos: era o enterro do Fluminense.
Piadistas de plantão, fanfarrões e bobos-da-corte por todos os lados a cantar a nossa tragédia.
O que nenhum deles sabia é que aquela seria a nossa última derrota no campeonato – e, a partir dali, o Fluminense ressuscitou para ser o Fluminense de sempre, o time que não desiste nunca, o time do último minuto, o time contra ninguém canta vitória antes da hora. Com seus sorrisos de satisfação, Kfouri, Renatourício, Vasconcellos e toda a platéia, mais os efeminados da Paulicéia, jamais desconfiaram de que cometeriam a maior “barriga” de suas carreiras jornalísticas ao afirmarem que o Fluminense era um time rebaixado.
O resultado é que todos eles foram rebaixados em termos de credibilidade. O Fluminense trocou as falácias flácidas da imprensa pela obsessão catalânica da vitória. O Fluminense se tornou um vampiro, ávido pelo sangue do triunfo. O Fluminense que me faz chorar de alegria e encher o peito de oceânico orgulho.
O jogo contra o Coritiba foi uma batalha dramática. Não podíamos contar com outro resultado que não o nosso, embora o empate nos beneficiasse. Foi uma pressão enorme. Não se pode esquecer que, em seus domínios, o time da casa goleou os campeões por cinco a zero. Mas também é verdade que fomos logrados pelo apito: o gol de Fred foi legal e a bola ultrapassou a linha final. Merecíamos a vantagem desde antes; Marquinho fez as nossas e acertou um belo chute de longe, no canto esquerdo do goleiro Vanderlei, abrindo placar. O Fluminense era melhor, mas o Coritiba era pressão; o empate veio logo depois numa cabeçada deles e o Couto Pereira veio abaixo. Jogamos bem e suportamos o inferno verde com galhardia. Um primeiro tempo sem nocautes, apesar do golpe com o gol sofrido. Quando voltamos, o que sei é que cada segundo valia um ano. Os sinais de rádio e tevê ecoavam, a bola cruzava nossa área, Rafael estava sempre atento, mas o temor era evidente, dado que temos um verdadeiro exército da má-vontade contra nós.
Foram dez vitórias, foram gols de Fred em quase todos os jogos, o Fluminense chegou à rodada final dependendo somente de si para matar o descenso e tudo isso não poderia ter sido em vão. Em muitas vezes, pensei nos meus amigos de arquibancada, os de coração, os da Fluorkut, em toda a nossa torcida. Havia um misto de agonia e medo, mas também a confiança de que tínhamos nos tornado de vez o time de guerreiros que tanto aplaudimos nestes meses recentes.
O time que, do nada, ressurgiu diante da América e só não a conquistou por força de uma trapaça física, no pior sentido que podemos depreender.
O time que, rodada após rodada, ofereceu tapas com luva de pelica aos seus detratores.
O time que trouxe de volta sua linda e apaixonada torcida para noites inesquecíveis contra o Atlético Mineiro, Cerro Porteño e o time equatoriano, afora tardes maravilhosas contra o Palmeiras, o Atlético do Paraná e o Vitória, que foi trucidado com os Leandros rancorosos.
O time que goleou o Sport impiedosamente, mas com respeito. O time que virou um jogo perdido contra o Cruzeiro e seu Mineirão lotado.
Caros amigos, caros senhores: este é o time que promoveu a maior virada da história do futebol brasileiro em todos os tempos. Era um time dado como morto, mas que saiu caminhando a passos rápidos do hospital. Não seria esse time que perderia a partida no Couto Pereira.
Cada minuto, um ano. A pressão do Coxa, incipiente mas constante. Segurávamos como podíamos. Pela primeira vez em muitos anos, tínhamos uma vantagem do empate a nos resguardar. Passou um cinqüentenário e o jogo acabou. Infelizmente, fomos algozes de mais um time em seu centenário e o Coritiba foi rebaixado, fato que provocou a fúria de uma minoria que não representa a fidalguia do clube e, seguida, a invasão de campo com ações de vandalismo aterrorizantes. No meio de todo o cenário trágico, eu lembrei de quase meio século atrás: vencemos o Bahia e já comemorávamos a classificação para a segunda fase do campeonato brasileiro, quando o Coritiba fez um gol aos 47 minutos do segundo tempo, se classificou no nosso lugar e foi campeão daquele ano. Hoje, tanto tempo depois, coube a nós o papel cruel de um algoz.
O Fluminense não vai morrer. O Fluminense não caiu. O impossível não nos vence, nem a matemática.
Aos mais jovens, peço que guardem estes três meses com carinho. Em cinqüenta anos eles não serão repetidos. Eu não verei uma reação dessas na Terra novamente. De tanto tentarem nos impingir uma falsa pecha a respeito de viradas de mesa, resolvemos fazer dentro do campo a maior virada de todos os tempos no futebol brasileiro.
Este ano não se encerra com os títulos que ansiávamos. Mas o fechamento dele é inesquecível e digno dos mais belos, sofridos e admiráveis momentos de nossa história. Terminamos esta partida com um empate em um a um, mas tenho certeza de que foi uma das maiores vitórias que conquistamos em cento e sete anos. A vitória contra o deboche. A vitória contra o preconceito midiático. A vitória contra os falastrões desastrados.
Aproveito as últimas linhas deste ano para agradecer a todos os que compraram essa luta que apenas parecia impossível. O Tricolor voltou. Toda a nossa torcida presente em campo, no Maracanã, por todo o Brasil e na América. Nossa comissão técnica, que se esmerou para formatar o time de guerreiros. Nossos jogadores, que deram tudo por essa camisa mágica e que, se não conquistaram uma taça, ganharam para sempre nosso carinho, respeito e admiração. Creio que todo o elenco se sinta bem representado pelos nomes de Conca e Fred.
Aos pascácios que debocharam de nós e tiveram de recolher suas caras amassadas ao final do ano, convém um lembrete: já temos uma forte base, temos craques e uma torcida mais apaixonada do que nunca. Talvez os dissabores que tenhamos sentido esse ano nas decisões de títulos sejam dissipados mais breve do que se imagina.
Até 2010. Quem espera sempre alcança.
De nós, só duvidam os tolos.
Publicado em “Do inferno ao céu – a história de um time de guerreiros”, Editora 7Letras, 2010.
Panorama Tricolor
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Imagem: arte de Guis Saint-Martin