Espanholização ou Flamenguização? Histórias e mentiras que nos contaram (por Marcelo Savioli)

Amigos, amigas, no início do século XX tivemos no Brasil o que ficou conhecido como política do “café com leite”.

Consistia na alternância no poder central da República de mandatários oriundos das oligarquias cafeeiras de Minas e São Paulo.

Naquela época o café era o principal produto de exportação da recém fundada república, que se arrastava em seu mandatório processo de industrialização.

A alternância entre mandatários dos dois estados da federação era produto da superioridade econômica dos mesmos, principais produtores de café do país.

Quando a Espanha decidiu espanholizar seu futebol, se me permitem o trocadilho, havia uma clara intenção dos envolvidos, particularmente a emissora de televisão que explorava o produto, de aprofundar uma realidade no futebol espanhol.

Real Madrid e Barcelona já dominavam econômica e esportivamente o futebol espanhol desde priscas eras. Ao aprofundar essa condição, pretendiam os envolvidos criar um produto para o mundo.

Não, não era o Campeonato Espanhol. O produto a que me refiro era a dupla Real e Barça, projeto que logrou êxito quase que imediatamente. A concentração de receitas de televisão nesses dois clubes os levou a ampliar seu poderio econômico, ampliando sua condição de potências europeias.

A estratégia deu certo e todo o mundo futebolístico voltou os olhos para os elencos estrelares dos dois escolhidos. Com o tempo, porém, a estratégia se mostrou um verdadeiro tiro no pé. Clubes tradicionais locais, que antes lutavam por títulos, gastavam mais do que podiam para tentar competir com os dois gigantes, sem êxito e acumulando dívidas.

Enquanto isso, as organizações Globo preparavam aqui a mesma receita, numa conjuntura totalmente diferente, tentando elevar, com o mesmo método de doping financeiro, Corinthians e Flamengo, dois clubes provincianos, à condição de Barça e Real brasileiros.

Em 2015, sem que nenhum veículo de mídia brasileiro, exceto o OTricolor.com, noticiasse, o governo da Espanha, pelo bem de seu produto, o Campeonato Espanhol, interviu, obrigando à instituição de um modelo em que o clube a receber mais receitas de televisão, não pudesse aferir mais que o dobro do clube com menor receita com a rubrica na primeira divisão, imitando o que já era realidade na Inglaterra.

O governo britânico intervira muito antes para promover a competitividade e o crescimento coletivo dos clubes e do produto Premier League, hoje o mais festejado e rentável campeonato nacional do mundo. Seguindo, obviamente, modelos bem sucedidos, como o da NBA.

Nos dias atuais, o Campeonato Espanhol sumiu do imaginário do público futebolista, enquanto Barça e Real enfrentam, na Europa, concorrência pesada, sobretudo dos clubes ingleses, com a companhia de PSG e Bayern, mas ainda com outros clubes que tentam roubar o protagonismo a todo momento.

Aqui no Brasil, quando a Globo, a partir de 2012, depois de implodir o Clube dos Treze, iniciou o derrame de dinheiro em Corinthians e Flamengo, em detrimento de marcas mais fortes, prestigiosas e tradicionais do futebol brasileiro, o pretexto era o tamanho da torcida, como se esse aspecto pudesse interferir no potencial de retorno para a emissora, uma mentira tamanho família.

Tudo que vivemos hoje, com o agora bicampeonato do Flamengo é um processo histórico. Apenas tolos acreditam que tudo se deve à bem sucedida gestão de Bandeira de Melo. Não existiria gestão Bandeira de Melo sem o dinheiro da Globo. Não existiriam, provavelmente, os títulos do Corinthians de 2015 e 2017 sem que a volúpia dos corinthianos tivesse falado mais alto que o bom senso.

O Corinthians ainda vai comer o pão que o diabo amassou, porque antecipou os resultados, mas sobretudo pelo cavalo de troia em que se transformou o Itaquerão, o que dizem que o Lula deu, mas que o Corinthians continua devendo. E muito!

Como a questão econômica faz a diferença, o Palmeiras ocupou o lugar do Corinthians como rival do Flamengo na espanholização à brasileira. Fez um grande trabalho, ergueu sua arena, investiu num excelente programa de sócio torcedor e atraiu a Crefisa, que tem coração palmeirense, mas não joga dinheiro pela janela. Tudo com dinheiro privado, como deve ser, e sem dívidas faraônicas, do jeito que não deve ser.

A Globo empreendeu um simulacro de transformação nas últimas negociações. Adotou o modelo da Premier League na transmissão em TV aberta, mas continuou alimentando a diferença econômica no pay per view, justamente num momento em que a superioridade econômica e financeira do Flamengo já se consolidara. Plano perfeito!

Como há divisão desigual, mesmo no modelo da Premier, embora pelo desempenho e pelo mérito, o Flamengo ganha nas duas frentes. Com o bicampeonato, obteve mais receitas que os demais mesmo na TV aberta, aprofundando a desigualdade econômica.

E esse modelo vai até 2024, o que significa que, ou aparece um Zorro, um Robin Hood, ou a diferença vai se ampliar e mesmo para o Palmeiras será difícil competir com o novo mandachuva do futebol brasileiro, forjado nos gabinetes da Vênus Platinada.

Mas de mentira em mentira, há um outro episódio que mostra que a profanação da nossa razão não se fez só no que diz respeito à falácia da “maior torcida, mais dinheiro da TV”.

Não, não. Tem o episódio da Adidas no Fluminense, que é sintomático. Foi em 2015 ou 2016 que a mídia esportiva anunciou com estardalhaço e iminência de a Adidas, então fornecedora de material esportivo do Fluminense, no Rio de Janeiro, fechar um contrato com o Flamengo que era o dobro ou o triplo do que ganhava o Fluminense.

Ficou claro, evidentemente, o propósito de pisotear a autoestima tricolor, sobretudo como uma espécie de castigo pelo não autorizado protagonismo nos anos anteriores. Já haviam implodido a parceria entre Fluminense e Unimed, tirando do clube sua principal receita.

Há quem pense que essas coisas são por acaso. Quem, como eu, leu e presenciou coisas obscenas e obscuras sobre o sistema, tem propensão maior a acreditar em fadas madrinhas do que naquilo que diz a imprensa esportiva, haja vista o episódio Lusagate.

Pois deitaram falação de que a Adidas pagaria muito mais ao Flamengo porque o Flamengo tem mais torcida e blá, blá, blá.

Uma empresa como a Adidas possui departamento de Marketing poderoso, com profissionais de primeira linha, capazes de analisar conjunturas. Era evidente o processo em curso no Brasil de espanholização. Era óbvio que o Flamengo era o grande investimento para o momento, com visão de futuro, que precisa estar presente em qualquer decisão de Marketing.

Como, no entanto, justificar uma traição tão vil à marca com quem esteve aliada por anos? Em qualquer outro lugar, em um país sério, por exemplo, em que a imprensa é séria e as pessoas são moralmente mais rígidas, mas no bom sentido, a atitude da Adidas com relação ao Fluminense abalaria seriamente a reputação da marca.

No Brasil, no entanto, a Adidas sabia que tinha a mídia esportiva para dar outro rumo à prosa.

Ao mesmo tempo, o Flamengo, falido não havia dois anos, conseguia patrocínios milionários. Creio que tem muita literatura sobre a origem desses patrocínios, mas o que importa, nesse momento, é o que foi vendido para a opinião pública.

O Flamengo, em 2011, foi ao mercado buscando um patrocínio de R$ 40 milhões, tendo como trunfo a contratação de Ronaldinho.

Ingenuidade pura, mas a humilhação foi maior. Não conseguiu um único tostão. Porém, alguns anos depois, sem que nada importante houvesse aparentemente acontecido, passou a ser a marca mais valiosa do sistema solar. Freud não explica. O Marketing Esportivo muito menos.

Voltando à Adidas, o core business da empresa é venda de material esportivo. Associar sua marca a pessoas, atletas ou clubes é uma forma de promovê-la, não de obter vendas diretas com nichos, mas de prospectar grandes fatias de mercado.

O Flamengo, mesmo com seus 400 bilhões de torcedores, não representa um traço no faturamento da Adidas. Isso quer dizer que nos foi vendida mais uma mentira para justificar o projeto de flamenguização do futebol brasileiro. Até o mais peralta dos profissionais de marketing saberia na época que o momento não justificava, sem o olhar do futuro, a sacanagem que a Adidas fez com o Fluminense. Mas, por outro lado, só um tolo não sabia o que viria pela frente, que é o que nós estamos presenciando.

Não tem nada a ver, repito, com tamanho de torcida ou volume de venda de material esportivo, mas serviu como argumento para outras marcas de artigos esportivos imporem aos clubes brasileiros uma pauta de subordinação. Pagam comissão por vendas e estampam suas marcas em nossas camisas de graça.

Um argumento para justificar o injustificável acabou por trazer grande prejuízo aos clubes brasileiros. Ao ponto de clubes com marcas próprias, que ficam com toda a receita das vendas, superarem os “patrocinados” em receitas com a rubrica.

Parece piada, não é? Mas não é. Ou Robin Hood baixa por aqui, ou o futebol brasileiro implodirá nos próximos anos, vítima de um desinteresse jamais visto, num produto em que os jogos e campeonatos sugerem cartas marcadas, mas para muito além das sui generis interpretações do VAR.

O futebol espanhol está aí para nos esclarecer, e está muito longe ainda de chegar ao fundo do poço. Quem viver, verá. Mas pelo menos por lá, desde 2015, já tomaram uma atitude. Talvez dê para recuperar o prejuízo.

Aqui no Brasil o que nós temos é a expectativa de que o atual sistema se perpetue até 2024, ampliando a desigualdade econômica. Talvez o sistema, que já conseguiu tirar o Fluminense do posto de maior campeão fluminense de todos os tempo, consiga tirar o Palmeiras do posto de maior campeão brasileiro e São Paulo e Santos de maiores brasileiros campeões da Libertadores.

Será um feito impressionante, do qual todos seremos cúmplices.

Saudações Tricolores!

2 Comments

  1. Savioli, a única solução seria a união dos clubes, caso estes argumentos fossem enxergados por eles. Pois se os clubes se unissem e criassem uma liga nacional, com equilíbrio, e deixassem a Globo com flamengo e Corinthians, eles teriam que se render ou jogar entre si 38 rodadas/ano. O problema é que não estão entendendo o que está ocorrendo e cada um quer se dar bem em cima do outro e a coisa nao muda. ST

    1. Posicionamento político dos clubes é algo que se pode negociar nos bastidores. Já a defesa do interesse de um clube só é possível como decorrência de um projeto de transformação política.

      ST

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