Desde que o mundo é mundo e a vida foi determinada por artifícios matemáticos feito horas, dias, meses, anos, chegamos a cada fim de dezembro e pensamos.
Pensamos.
O que passou, o que se foi, o que virá, o tal futuro que vira presente num estalar de dedos.
O que ficou mais longe, às vezes reabilitado por memórias, imagens, conversas e sonhos.
No futebol não poderia ser diferente: 2015 chega dentro de algumas horas, a torcida do Fluminense se enche de esperanças e incertezas.
Nesta manhã, eu penso nos domingos de muitos anos atrás, quando era apenas um pequeno jovem torcedor com todo o tempo do mundo.
Acordar cedo e já ter a expectativa de cruzar a cidade para comer um cachorro quente, tomar refrigerante cheio de espuma vendido pelos astronautas de branco com seus capacetes, olhar para cima e ver a nuvem branca de talco, olhar para o campo e ver o time todo de branco com onze craques – pouco importando se a realidade e a fantasia estavam de mãos dadas.
As pessoas simples ao redor do Maracanã: o vendedor de laranjas, de bandeirinhas, de pipas.
Os menininhos pobres pedindo esmola para comprar ingressos, geralmente chorando quando pegavam o papelzinho e passavam na roleta, descalços e sem camisa.
Os bancos de praça, onde se descansava antes da abertura dos portões – era bom chegar cedo, qualquer jogo lotava.
Os garotos das torcidas organizadas que faziam o programa de televisão, ao lado dos decanos.
O mar de bandeiras entrando junto pelo primeiro túnel de acesso à esquerda das cabines de rádio.
As celebridades, os artistas, os intelectuais, todos tricolores demais e apenas torcedores no grande circo místico das arquibancadas.
A multidão saindo do trem para a geral, com seus pares de chinelos, radinhos de pilha e empolgação.
A preliminar de juvenis, os craques meninos acabando com as partidas. Delano, Deley, Braulino.
Meu pai, sempre sério, me puxando pela mão.
Os sinais das rádios ecoando em todo o Maracanã: Globo, Tupi, Nacional. Música à parte nas cantorias.
Os torcedores juntos como se fosse uma família, tudo bem longe da limpeza étnica enrustida de hoje em dia. Ao contrário do que sempre se disse, embora o Fluminense tenha nascido na elite, tornou-se uma potência popular.
As pessoas que se abraçavam e cumprimentavam, sem mesquinharias pessoais ou sede de poder idiota. Era um Brasil da ditadura; estar no Maracanã era ter um pouquinho de liberdade.
Eu não precisei de um timaço do Fluminense para me apaixonar por ele para sempre. Vi pedaços da Máquina e engrenei mesmo em 1978, quando estávamos em crise por falta de títulos e dinheiro há monumentais dois anos.
De lá para cá, vi incontáveis voltas olímpicas, derrotas terríveis, dor, morte, drama, vitória, superação, dinheiro, miséria. Vida. Assim tem sido e espero que, nesse terço final que me cabe ainda por aqui, novas histórias sejam bem escritas.
Certa vez, li sobre o genial artista plástico Juarez Machado. Dizia ele que só seria realizado quando soubesse desenhar a saudade.
É o que eu procuro.
As lembranças, as desimportâncias, as pequenas histórias de amor entre um garoto e seu time de futebol nos dias mais felizes de sua vida.
Eu não sei desenhar a saudade, mas a sinto o tempo inteiro.
A dor de não ter mais quem me puxe pela mão.
Os vendedores humildes que desapareceram, assim como os menininhos pobres.
As bandeiras juntas.
O Careca em algum lugar no estádio. O Seu Armando. A Tia Helena. O Zezé. O Antonio. O Sérgio. O garoto chamado Maurício. Batucadas na mão do Dinho. Meu amigo Jorge Pinto. Gomão. Luizinho, então puxado pelo João Carlos. O Gota.
A certeza de que a camisa do Fluminense em campo era maior do que todos os seus inúmeros títulos e craques. Espírito coletivo acima de tudo. O timinho que sempre se mostrou timaço.
Desenhar a saudade é impossível.
Resta a grande tarefa do ano que vem: reviver o grande amor num estádio que já não existe, cujos freqüentadores já não existem, onde vaidades superam a união, mas onde as três cores ainda são nome.
Nense.
O Fluminense que eu vivi.
Panorama Tricolor
@PanoramaTri @pauloandel
Imagem: jb
O que falar de um belo texto como esse? Show! ST!
Boa tarde,Andel!
Cara você me emocionou e me inundou das lembranças que nesses meus 54 anos eu vi e vivi vendo o meu tricolor ,que vi a primeira vez em 1965 com apenas 5 anos de idade levado pelo meu pai e depois muitas outras vezes com camisa e bandeira e cresci vendo o velho maraca e seus personagens como você muito bem descreveu,éramos uma familia mesmo que por algumas horas.E são estas lembranças que alimentam o nosso ser Fluminense.
Abraço,um 2015 de sucesso pra vc e ao nosso Tricolor!
Sentimentos que revivescem à leitura de seus textos. Antes do puro e simples saudosismo, um retrato fiel do que o Fluminense representou e representará para todos nós que vivemos esses áureos tempos de pouca vaidade e muito amor. Parabéns!