A Mulher-Gorila sabe que a cidade é uma selva e se não for à luta, ninguém fará isso por ela. A vida lhe foi ingrata desde o dia em que tomou a difícil decisão. Há dias que não come. Seu estado é quase de inanição. Ser gorila não é uma questão de vestuário.
Foi assim que saiu às ruas. Uma pobre diaba exposta ao olhar incrédulo dos transeuntes. Não há como esconder sua condição: a Mulher-Gorila tem como principal característica o fato de ser assumida.
E é realmente impressionante como consegue armazenar forças. Improvável que alguém possa caminhar, como ela o faz, estando tão depauperada.
Agora mesmo, em pleno sol do meio-dia, uma lebre, mais delicada que a pluma, veio em sua direção. É difícil acreditar que não tenha sido a Mulher-Gorila que tivesse ido a seu encalço. Seus movimentos eram leves e harmoniosos. A pele, sob a luz do sol, emitia uma luz dourada, entre o ouro e o âmbar.
Ela queria saber aonde ficava a rua Álvaro Chaves. Mas por que, entre tantos transeuntes, teria escolhido a própria Mulher-Gorila para pedir informação?
Fazia tempos que não surgia à macaca uma oportunidade como aquela. Não poderia desperdiçá-la em hipótese alguma.
A lebre tinha a pele trêmula. Havia um frescor em seus movimentos que enchia a alma da peluda.
A Mulher-Gorila começou então a enrolar. Eram anos de sevícias, jogos de cena, exercícios espirituais. Via a sua frente um longo caminho, cheio de curvas. Não poderia se precipitar.
A Mulher-Gorila rodava com a vítima todo o Largo do Machado. E afastava-se, de propósito, da rua procurada.
O destino da lebre era o Fluminense Futebol Clube. Mal podia imaginar que ao seu lado, escondia-se, muito bem disfarçada, a força secreta do mal.
Quantas evasivas.
Alguns passantes chegavam até a reparar.
À essa altura, a Mulher-Gorila gozava com a vítima de uma intimidade que crescia a olhos vistos. Era um processo gradativo e subliminar. Convidou-a a ir em sua casa, um miserável quitinete no coração do Largo do Machado. Ali poderiam ver pela internet, com mais tranquilidade, a rua procurada, já que ambas estavam sem celular. O acaso tramava.
Foi um lance ousado.
Acredito que, em todo percurso, a Mulher-Gorila tenha usado técnicas das mais variadas procedências: hipnose, persuasão, jogo de linguagem, carisma, simpatia. Estava predisposta, inclusive, a fazer uso do famigerado “boa-noite Cinderela”, se preciso fosse.
Só quando ambas entraram no elevador que a coelhinha teve um mau pressentimento. É como se, naquele instante, a máscara tivesse caído. Mas já era tarde.
Uma hora depois, o hino tricolor era ecoado de uma das janelas daquele pardieiro horrível localizado no coração do Largo do Machado. Sou tricolor do coração, sou do clube tantas vezes campeão. Era cantado tão alto, que chegava a abafar os gemidos de dor, que se faziam ouvir entre uma nota e outra. Parecia uma marcha fúnebre.
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Imagem: pra yt/Divulgação