Dezessete horas em ponto. Rola a bola, depois de um emocionante Hino Nacional cantado por setenta mil pessoas. As arquibancadas agitam-se no Mané Garrincha. É uma torcida diferente. Muitos dos que estão ali, depois da Copa, só verão um jogo, novamente, em 2018. É assim. Sempre foi. É a chamada “Torcida de Copa do Mundo”. Alguns até perguntam: quem é aquele de azul no campo? Ou então: o que é impedimento? Faz parte. Inclusive, alivia a atmosfera ranzinza dos torcedores full time. Para estes, nada funciona, tudo está ruim. Um passe errado é igual a acertar o dedinho no pé do sofá. Para aqueles, tudo está bom. Nos momentos enfadonhos, chamam a Ola para diverti-los. Ou um selfie.
Meu jogo começou mais cedo. Três horas antes. Medo do trânsito, da falta de vaga menos distante, da fila para entrar. Estranhamente, o clima de Brasília estava frio, o céu cinza. Prenúncio de tragédia. De Garrinchazzo? Enfim, o velocímetro variava entre 80 e 100 Km/hora. Chegando ao meu estacionamento favorito, o mais próximo possível, a preocupação: fechado pela polícia. “Está lotado”. Já? Nunca cheguei tão cedo! Tentei uma vaga nos hotéis ao lado. Deu certo! Tinha uma ali, no meio fio. Lá fomos nós. Eu e as três filhas. O brilho nos olhos delas não tem preço. Tropeçava-se em policiais. Estávamos hermeticamente protegidos. De longe, as filas alongavam-se rapidamente. De perto, voavam para dentro do estádio. Organização perfeita. Uma cervejinha, uns refrigerantes e rampas. Sobe-se, sobe-se, sobe-se. Monumento. Sente-se um grão de areia. Quase todo mundo fora ainda. O vermelho das cadeiras se sobressai. Mas rapidamente, o amarelo toma conta. Brigo com a internet. Nada, desisto. O tempo passa, os goleiros se aquecem, o time titular corre e o reserva faz roda de bobo.
Dezessete horas em ponto. Rola a bola. Um olho na bola, outro em Fred. Foi assim o jogo todo. A cada lance, no ataque, na defesa, observo a reação do artilheiro tricolor. Pela TV, contra Croácia e México, percebi que não estava à vontade em campo. Algo o perturbava. Fui ao estádio predisposto a tentar entender.
Até o primeiro gol de Neymar, Fred correu, marcou, deslocou-se, mas mal tocou na bola. Apesar da vantagem, o time brasileiro se perdeu em campo. O que aconteceu? Simples: uma linha, formada pela defesa, estava numa intermediária e outra, formada por Oscar, Neymar, Fred e Hulk, no campo de ataque. Entre as duas, Paulinho, Luiz Gustavo e um monte de camaroneses. Resultado: chutão, chutão. Um ou outro deu certo, mas, na maioria, os africanos assumiam a posse de bola. Fred tentava alcançar as bolas aéreas vindas de Thiago Silva ou de David Luiz. Nada. Os poucos passes vinham cheios de defeito e com dois ou três marcadores a sua volta. A cada bola perdida ou que parava no meio do caminho alterava o semblante de Fred. Olhava para o lado, sacudia a cabeça, procurava Neymar, que também parecia não entender. O ânimo do começo do jogo sumiu. Fred era o símbolo do desânimo. Ele é muito transparente em campo. No Fluminense é assim. Quando as coisas não estão bem, o artilheiro mostra isso para quem quiser ver. Na Seleção, não tem sido diferente.
Segundo gol de Neymar. Fred dá uma acordada, mas o time continua muito mal. A cada bola perdida por Paulinho ou por Daniel Alves ou por Hulk, ele olha para Felipão. Começa uma troca de sinais entre o atacante e o técnico. Fred dá entender que tinha dito onde estão os problemas e, a cada erro de Paulinho ou de Hulk, parece que cobra uma providência. Fim do primeiro tempo e todos somem rapidamente.
Rola a bola. Começa o segundo tempo. De cara, Fred gira e bate forte. O goleiro camaronês defende. Logo depois, Fernandinho lança David Luiz, o zagueiro cruza e o que aconteceu a gente sabe. Fred voa no zagueiro. O atacante ficou extremamente feliz com a jogada de David Luiz.
A cada erro de Hulk, Fred reclama. Às vezes, direto com o companheiro, às vezes, para si. Fernandinho dá outra vida ao time. A bola ronda a área de Camarões, mas Fred não está satisfeito, mesmo marcando seu primeiro gol nesta Copa. Hulk arranca pelo lado, Fred e Neymar correm livres pelo meio, mas sai um chute direto e errado. Fred olha para Neymar, olha para Felipão. Hulk arranca pelo lado, e quando chega ao fundo, a bola bate no pé esquerdo e sai. A furada arrancou risos dos “Torcedores de Copa” e xingamentos dos demais. Fred olha para Felipão. O técnico está ocupado, esbravejando. Hulk arranca pelo lado, pisa na bola e cai sentado. Fred olha para Felipão. Entre essas jogadas, uma falta no meio. Alguém está sendo atendido no chão. David Luiz corre em direção a Fred, que está quase dentro da área adversária. Os dois conversam, gesticulam e gesticulam. Fred parecia que defendia uma tese. David Luiz parecia que explicava algo ou, então, que rebatia alguma coisa. Deu a impressão que batiam boca, deu a impressão que trocavam ideias, enfim, não cheguei à conclusão alguma. Suposições. Só suposições.
Vem Ramires, vai Hulk. O jogo está morno, Fred está morno. Parece cansado, muito cansado. Quando o Brasil recuperava a bola, era difícil tocar para Fred, pois estava em impedimento, ainda voltando do lance anterior. Vem William. O jogador do Chelsea entra elétrico e dá um choque em Marcelo. O lado esquerdo do Brasil começa a render. Por consequência, Fred se anima. O cansaço sumiu. Sai da área, movimenta-se, dá uma excelente assistência para o quarto gol. Volta ao meio campo para ajudar a segurar a bola e fazer o tempo passar.
O milionário sueco apita. Fim de jogo. A bola para. Continuo observando Fred. O grupo se reúne para agradecer a torcida que lotou o Mané Garrincha. Lindo espetáculo. Legal essa “Torcida de Copa do Mundo”. Tira alegria de onde não tem. De repente, quebra um paradigma. Neymar voa no colo de Fred e os dois riem. Todos vão saindo de campo. Fred, não. David Luiz vai ao seu encontro. Conversam. William chega. Conversa, também. Fred ouve. David Luiz é um dos líderes do grupo. William vai embora. Neymar, que já estava saindo, volta ao meio-campo e se junta aos dois. Tal qual David Luiz, argumenta, argumenta. Fred ouve, ri. Os três colocam a mão sobre a boca. De repente, Neymar puxa a mão de Fred e o cumprimenta. O atacante do Fluminense passa o braço em torno do seu ombro. David Luiz abraça os dois. Os três saem conversando. As câmeras de TV se aproximam e a conversa acaba. Neymar vai para a entrevista de “Jogador da Partida”. Merecido.
O que tudo isso representa eu não sei. Talvez nada. Talvez tudo. Talvez o que estivesse lhe incomodando Felipão soubesse, David Luiz soubesse, Neymar soubesse. Talvez Fred tivesse dito, em alto e bom som, o que estaria ruim. Talvez um mal estar tenha sido criado no grupo. Talvez Felipão tenha dado ouvidos e, com muita resistência, resolvido mexer onde deveria ser mexido. Uma coisa ficou na minha cabeça quando voltava, inclusive, mudando minha própria opinião: o problema de Fred, talvez, não seja Neymar. Talvez Paulinho. Talvez Hulk. Talvez, tudo não passe de imaginação, menos a certeza de que Fred não está, ou não estava, feliz. Algo o perturba. Ou perturbava.
Panorama Tricolor
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Revisão preliminar: Rosa Jácome
Foto: www.querodesenho.com