Carta para um amigo supertricolor (por Paulo-Roberto Andel)

Diga, mestre,

As coisas não andam nada fáceis para o mundo. Sabemos disso. A cada dia a opressão atordoa as pessoas numa terra de injustiças, egoísmo e rancor.

Pois bem, conversamos nos últimos dias em função de tudo o que aconteceu e, por isso mesmo, reitero meu abraço a você. Passei por situação semelhante envolvendo três tios e, por muito pouco, não me alinhei a eles. Mas é sabido que você ganhou um amor gigantesco de centenas, milhares de pessoas e provavelmente esse é o única razão do tempo em que estamos por aqui: trocar amor. O resto não faz muito sentido.

Assim como conversamos, está tudo muito errado: é desumano ser indiferente a uma pessoa com fome, ou dormindo numa calçada, ou vagando pelas ruas completamente entorpecida para se esquecer da tragédia diária. Não seria difícil resolver isso, não fosse um único problema: o ser humano. Ele é que destrói as pontes que ergueu um dia.

Vamos falar do Fluminense, do nosso Fluminense. Não propriamente o de agora, parado – com razão – por conta da pandemia. Nestes dias lançaram as camisas novas, muito bonitas – eu acho todas bonitas, até a famosa de bolinhas em 1992 ou 1993. Foi legal ver Xamã cantar: a juventude toca, ele é um garoto vindo da pobreza e apaixonado pelo Flu. Agora tem milhões de fãs e demonstra o mesmo sentimento.

O nosso Fluminense do Edinho, lembra? Falamos disso. Igual a ele não vai ter outro, arrancando da defesa para o ataque, marcando gol de cabeça da risca da grande área, cobrando faltas imperdíveis. Perdendo ou ganhando, tinha esporro: ele queria sempre ganhar! Naquele tempo a gente não era amigo, infelizmente. Fui muitas vezes ao Maracanã sozinho, com minha solitária bandeira costurada pela minha mãe, de geral mesmo para economizar, 1981 e 1982. O time estava em crise, a torcida pressionava com justiça e daquilo nasceu o grande tricampeão.

Quando a gente passa dos cinquenta, por mais que haja muito a ser feito – e há, especialmente por você – sempre fica alguma busca pelo passado no futebol. Não creio que se trate de saudosismo: simplesmente era melhor mesmo. Os olhos de menino veem o mundo com mais amor e com a vantagem de toda uma vida pela frente. Os garotos de agora estão construindo suas histórias de amor ao Flu. Deve ser mais difícil porque os jogadores já não ficam muito tempo e pouca gente veste a camisa com aquela vontade de acertar. De lá para cá, o Romerito e o Conca. Pela vontade, o Marcão. Só.

Tenho muita saudade do Maracanã que Sergio Cabral acabou de assassinar. Aquele cheiro de pó de arroz escorrendo pelo concreto cinza, torcendo loucamente para que o Fluminense vencesse mesmo que Neinha, Fanta e Parraro não emplacassem. Por que o Gilcimar não foi um monstro, não sei. E o Cléber, que parou cedo? Tadeu deu bobeira.

Era um sonho ver os jogos dos juniores no domingo de manhã nas Laranjeiras. Você passava do portão da Pinheiro Machado, dava três passos e já se deparava com um calhamaço de glórias. Eu fazia jornada: para dar uma volta boa, meu pai vinha a pé comigo até a Siqueira Campos. Aquilo para mim era uma grande marcha, então chegava em casa muito orgulhoso e dava um beijo na minha mãe. Agora, o melhor mesmo era se, depois do banho, o pai dissesse “Vamos comer, hoje tem Maracanã”. Eram os momentos mais felizes da minha vida e passaram rápido. Coisa que poucos entendem, nenhum espírito de porco entende – só querem a objetividade idiota que Nelson Rodrigues sempre desprezou com justiça.

E o Futebol Cards, hein? Ontem o Alexandre Goulart postou uns maravilhosos. Tinha foto da Máquina. Meu Deus que não tenho, como pode alguém desrespeitar a Máquina? Será que não entenderam que milhares e milhares de cinquentões tricolores nasceram dela? Aquele fascínio em ver o melhor time do mundo, que estonteava os adversários só pela escalação. Dizem que a Máquina ganhou pouco, coitados. Azar dos ganhos.

Meu Fluminense era um escudo bordado vendido na Kayat Sport da Figueiredo Magalhães. O dono era o Seu Carlson, que foi árbitro e um super lutador – tem até estátua dele na Figueiredo com Tonelero. Joguei bola e botão com o Carlsinho, filho dele, gente boa, disputou uma Olimpíada, nunca mais vi. E dava pra comprar um número verde bonito que você grudava na camisa passando ferro quente. Faltava ainda a camisa Hering branca. Ah, minha mãe, que passou roupas, fez muitos cabelos e unhas para me dar o Fluminense de presente num escudo bordado.

Meu amigo, aquele nosso Fluminense tinha sabor de copo de Coca-Cola espumante na arquibancada, vendida por astronautas proletários nos degraus da arquibancada no Maracanã. Lembra das almofadas cinzas e grenás que eram vendidas lá fora com o escudo? E do ritual das bandeiras, às quinze pras cinco? A fila indiana vinda do primeiro acesso à esquerda da Tribuna de Honra (onde se sentou muita gente desonrada), as grandes bandeiras subindo: Jovem, Fôrça, Fiel, Young, Garra. Então éramos abraçados por uma nuvem sem fim de pó de arroz e finalmente estávamos no céu. Todos os corações do mundo em três cores. Ninguém fala, mas a torcida do Flamengo do outro lado, gigantesca, se falava. Eles viveram a história.

O Fluminense dos radinhos de pilha com os sinais de rádio ecoando por todo o Maracanã, especialmente nos minutos finais de um clássico com mais de cem mil pessoas, era o mesmo Fluminense dos jogos humildes com dois ou três mil torcedores – eu estava naquela virada contra a Portuguesa em 1994, junto com o Flavão, para seiscentos presentes.

O Fluminense dos molequinhos descalços, pedindo moedas na bilheteria – mesmo – e quando ganhavam um ingresso, quase enlouqueciam de tanta alegria, passando a roleta e subindo a rampa como se tivessem ganho o prêmio mais importante do mundo. Muitas vezes meu pai comprou para eles, mesmo quando já estava pobre. Isso faz falta demais: a generosidade. Nós chorávamos. Era o Fluminense.

De lá pra cá, muita coisa aconteceu e estamos aqui vivos, com muito pela frente – você bem mais do que eu. Hoje é sábado, não tem jogo, estamos trancafiados porque é preciso, a vida precisa melhorar. Faça todos os documentários, é preciso. O Brasil precisa do cinema. Dizia Glauber Rocha: “A palavra é cinema”.

Wendell, Miranda, Moisés, Edinho e Carlinhos. Ou Pintinho, Cléber e Rivellino. Ou Gil, Doval e Paulo Cezar Caju. Ou Gilcimar, Amauri e Paulo Lino? Bobô e Super Ézio.

Deley, Gilberto e Mário. Robertinho, Cláudio Adão e Zezé. Paulo Goulart, Edevaldo, Tadeu, Edinho e Rubens Galaxe. Nelsinho no banco.

Fazer o bem, seguir em frente, procurar a cada quarta e domingo aquele velho escudo bordado em algum lugar da TV ou no estádio, mesmo gurmetizado. É que o sonho não dorme nem cessa.

Aquele velho abraço.

Panorama Tricolor

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