Alta noite já se ia (por Paulo-Roberto Andel)

NAQUELE TEMPO futebol era ver o jogo no estádio. Engraçado que eu não tinha muitos amigos tricolores para me acompanhar: fui muitas e muitas vezes sozinho ao Maracanã. Ainda vou. Talvez porque essa seria a missão que me cabe: contar as histórias sozinho, viver como um torcedor solitário. Mas eu tinha treze anos de idade e não podia prever isso.

Chamei o Floriano. Pouco importava ele ser Flamengo. Gostávamos de futebol. Ele, ainda mais novo do que eu. E fomos. Se tivéssemos chance e algum dinheirinho, o Maracanã era diversão garantida. A gente ia, comprava o ingresso na hora, rapidamente subia a rampa e logo dava aquela sensação de frio na barriga ao ver o esplendor do maior campo de futebol da Terra, surgido décadas depois dos primeiros grounds cariocas que se espalharam por toda parte.

Meu caminho mágico para o estádio maior sempre partiu de Copacabana, no 434 para que a volta fosse ainda maior, saborosa, para apreciar vários bairros. A viagem do 435 era mais rápida e tinha menos graça: em compensação, passava na porta do Fluminense. Todas as vezes que ali passei na juventude, suspirei ao ver o grande muro grená. Por sorte, consegui ver jogos lá. Tinha outra coisa misteriosa no 435 também: beirar a Marquês de Sapucaí e suas estruturas tubulares, até que Brizola acabou com a pouca vergonha e o Rio ganhou o Sambódromo.

Chegamos e sentamos na velha e querida arquibancada de concreto. É claro que hoje é mais confortável, mas o que torna o passado do Maracanã impecável é que ele tinha alma, algo difícil de explicar mas fácil de sentir para quem o vivenciou.

Chovia. Chovia. O Fluminense fez 1 a 0 numa linda cobrança de pênalti feita pelo Edinho, nosso monstro máximo. Não era um grande jogo, mas estar no Maracanã era o Olimpo dos garotos do Rio em 1982. Nós, tricolores, sonhávamos com o título brasileiro. Havia certa impaciência porque o Flu não era campeão há um ano e meio, acreditem – hoje pode ficar dez anos, que quase ninguém liga.

No meio do segundo tempo o Fluminense construiu sua goleada. Mostrou força e garantiu seu primeiro lugar no grupo. O sonho do Brasileiro ainda duraria um mês, até às quartas de final diante do Grêmio.

O que sei é que choveu muito. Na saída, não sei por que, eu e Floriano nos enrolamos. Não havia ônibus nem trem. Acho que nosso erro foi esperar a chuva passar e isso nos atrasou muito. Então o velho Maracanã ficou deserto e fizemos algo impossível hoje: dois garotos, um de treze anos e outro de doze, caminhando sozinhos pelo lado escuro do CEFET a caminho da Praça da Bandeira – eu sabia que lá tinha várias conduções. Não tínhamos medo, mas alguma apreensão. As ruas estavam desertas, muita água na pista, nenhum carro.

Passou um bom tempo, já era meia noite e surgiu um 464 quase deserto, sem qualquer sinal de alegria pela goleada tricolor. Embarcamos. O ônibus parecia uma nave sideral. Rapidamente decolamos rumo a Copacabana. A velocidade do veículo não impediu a gozação de uns passageiros com as travestis da Augusto Severo, ainda na batalha pela sobrevivência em plena noite de chuva. Passamos voando pelas praias do Flamengo e Botafogo. Já em Copacabana, encontramos alguns vestígios de Fluminense: o Cervantes tinha uns tricolores bebendo e comemorando. A Marisqueira estava fechada.

Saltamos na esquina da Figueiredo Magalhães com a Barata Ribeiro e deu tempo de lanchar um cheeseburger no Sumol, também com tricolores. Eu me sentia em casa. Antes de chegar ao meu prédio, onde eu ainda moraria por onze anos, deixei o Floriano em sua portaria.

Chegando em casa, tive medo dos meus pais estarem muito preocupados, mas eles dormiam o sono dos justos, então me senti feliz, fui tomar um banho e ainda ouvi um pouquinho de rádio antes de dormir. Eu só tinha aula às três da tarde, dava para descansar bastante.

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Quase quarenta e um anos depois, meu amigo Floriano me manda uma mensagem pelo WhatsApp. Me pergunta como fazer para comprar ingresso para ele e sua filha, já que não é sócio do Flamengo e não tem um dos inúmeros planos. Acho um link útil, considero a leitura confusa mas é o que tem.

Meu amigo é pé quente. A gente precisa voltar ao estádio. A gente precisa rever o Maracanã juntos num jogo vazio e chuvoso por aí.

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Daquela noite, alguns nomes do Fluminense continuam pairando pelo ar. Paulo Victor. Edinho, naturalmente. Jandir, Mário. Robertinho.

Ângelo era um ótimo jogador de meio, vindo do Atlético Mineiro. Morreu cedo. Anos depois, o Fluminense trouxe outro bom meia do Atlético, Vander Luiz, também falecido há alguns anos. Uma pena.

Do lado do Cruzeiro, morreu o goleiro Luiz Antônio, sucessor de Raul. Eudes jogava demais, Jésum, vindo do Bahia, também.

O treinador do Fluminense era Dino Sani, volante campeão do mundo em 1958, vivo e com saúde aos 90 anos de idade hoje. Pelo Cruzeiro, o “homão” Iustrich, polêmico treinador e goleiro com longa trajetória no futebol.

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Eu queria ter de volta aquele frio na barriga que os garotos de treze anos sentem ao ir para o Maracanã. Ou a alegria dos garotinhos pobres, que ganhavam ingresso dos mais velhos no guichê, e saíam correndo para a glória da subida da rampa do Bellini ou da UERJ.

Às vezes tenho. Só às vezes. O tempo traz maturidade mas também algum ceticismo. Quando vou lá, parece que minha vista mistura as imagens atuais com as passadas, então enxergo a geral que morreu, a arquibancada que morreu, os túneis no gramado que estão irremediavelmente mortos, e fico procurando alguma esperança de ver o Fluminense que eu vivi, mas acabo me chocando com a verdade implacável de Heráclito de Éfeso: não se pode entrar no mesmo rio duas vezes.

O Fluminense vai jogar logo mais no Maracanã. Vai ter chuva.

Continuarei sozinho como sempre estive, mas diante da TV, sonhando com dias sinceros enquanto ainda há tempo.

Quando o jogo acabar, não precisarei ficar preocupado com meus pais, mas bem que eu gostaria. Afinal, como ensinou o nobre poeta tricolor Belchior, viver é melhor que sonhar.

Dedicado a Floriano Romano, gênio da arte brasileira, mais às memórias de Galo, ícone do Catete e Glória, e Glória Maria, presença eterna do jornalismo do país.