Um meio de semana sem jogos locais, algo incomum nesse sarapatel de campeonatos pelo ano inteiro após ano – e as peladas de férias.
Chuva, frio e um trem em testes. Eis a velha Guanabara, agora olímpica – é permitido publicar a palavra aqui? Somos donos da nossa língua?
O nosso time, que queremos ver sempre triunfante, supremo, acima do bem e do mal, infalível, intocável.
Quem experimenta a seu favor na vida um amor tão intenso quanto recebe um clube de futebol?
Poucos e poucas.
O amor que não se mede, não falha e é chama flamejante a calcinar qualquer intempérie, mesmo quando dá errado.
Por causa do amor, nossos jogadores são os melhores de todos os tempos – e fazemos do século a semana passada ou até damos de ombros ao que passou. Os que xingamos outro dia voltam a ser heróis com dois passes certos – assistência é o cacete com frio -, um belo cruzamento, um gol mequetrefe. Fomos desprezados? Pisaram nas nossas caras? Fomos feitos de idiotas? Deus perdoa. A torcida também. Somos todos Amélias do genial tricolor Mário Lago.
Ah, o amor, que nos faz bocós de primeira: apagamos todos os xingamentos e pragas.
Nosso clube é o melhor do mundo, o mais revolucionário, moderno, bonito, rico e resolvido. Sempre foi assim, agora é insuperável e o céu não tem limites. O resto é fichinha, os adversários são modestos e, se a tabela do campeonato diz outra coisa, ela deve estar mentindo…
E a torcida? Linda, linda, linda, vanguardista, plasticamente perfeita, acolhedora, democrática e onipotente a ponto de mostrar seu esplendor até mesmo na ausência, tal como a desse momento nômade que vivemos. Novos jogos virão e neles demonstraremos a nossa força infinita, nem que apenas nos computadores de plantão a qualquer gol sofrido.
Basta um novo patrocinador e lá estamos nós curtindo a página no Facebook, retuitando as propagandas, correndo para comprar os produtos, que são os melhores do mundo, de todos os tempos – eles pagam os salários dos nossos jogadores! Se a verdade não for tão verdadeira, esquecemos e ninguém liga. Ninguém lembra a médio prazo. O Brasil é assim, ora!
Temos dinheiro, prestígio, poder, grandes receitas, insuperáveis realizações, história, tradição, supremacia, perfeição. Nesse momento, naturalmente não somos humanos. Em muitos outros, talvez, com o melhor e o pior desta sentença.
Nos últimos anos, temos prestado muita atenção a declarações demais, informações demais, detalhes demais, penduricalhos demais, opiniões categorizadas demais – muito por conta dos que as emitem. Parece óbvio que o corte de cabelo de fulaninho ou a evangelização de beltraninho é essencial para a nossa boa jornada. Ou que sicraninho colocou gelo na orelha por causa do furo do brinco. Engraçado mesmo é quando colocam um cara que não jogou para dar a entrevista coletiva, seja na vitória ou na derrota – e todos acham tudo muito relevante.
Esse futebol, com cada vez mais falas, menos reflexões e palavras: foco, linhas, proposta, gestão, planejamento, trabalho, alegria. Alguém sabe dizer por que temos economizado tanto no vernáculo?
O nosso é bonzinho, o deles é pilantra. O nosso é de grupo, o deles é egoísta. O nosso é suado, o deles é roubado. Eu venço, nós empatamos, vocês perdem. Eu acerto, nós temos dúvidas e vocês erram. Lógico, não? Alguém já viu esse filme no cinema?
No fim das contas, tudo se resume às velhas ambições daqueles garotos no começo do século XX no Rio das pestes: chutar bola, ver um gol, comemorar loucamente, trocar abraços e, numa vida cheia de percalços, trabalhos, dores e dissabores, experimentar pequenos goles de felicidade. Agora também há dinheiro e poder, o que atrapalha bastante – bastante – dinheiro e poder são crack na conta corrente – mas talvez nem sempre. Cada caso é um caso.
Enquanto isso, anoitece em certas regiões e mesmo com tudo contra, em alguma ruela, casebre, barraco, boteco ou pracinha – e também nos salões nobres, muitas vezes infestados de novos ricos e deslumbrados de ocasião, até mesmo quem ostente um relógio Calvin Klein – céus! -, o futebol aí está a inundar corações e mentes, letras e expressões, de tal modo que até mesmo a simples ausência de um jogo ou rodada explica tantas palavras aqui, que, se impressas fossem, amanhã forrariam a gaiola do papagaio – mesmo contra a vontade dos pernósticos de ocasião, bronzeados pela desimportância.
A única verdade: o futebol não para. Passado, presente e futuro andam abraçados, com direito a beijos inesquecíveis e revivals dos bons. Ai de quem nunca os provou.
Panorama Tricolor
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Imagem: rap