Quatro de novembro (por Bruno Langer)


Alguém nasceu no quatro de novembro.

Alguém se foi no quatro de novembro.

Hoje, ídolos forjados ao longo daquela temporada têm seu desempenho questionado. Dúvida genuína: seria melhor se todos debandassem? Seria mais fácil se a decadência dos campeões da América tivesse justificativa mais amena? Será que eu prefiro ligar a TV e ver um jornalista com sotaque paulistano dizendo “Cano só joga mal porque foi pro Al Chucrute depois do título”?

Frustração é um sentimento que a gente lida fingindo que sabe lidar. Um ano depois do maior 04 de novembro de todos os tempos, o retrogosto não é mais aquela explosão de sabores. Ainda assim, não é amargo.

Não é amargo sair de anos de restrições sanitárias e, após respeitá-las desbancando uma política de compadres que Flamengo e Palmeiras mantinham sobre quem levantava o troféu de campeão da América, o nascido em Laranjeiras tinha o que precisava pra lembrar ao mundo do que o futebol brasileiro é feito. Voltamos ao estado da arte.

É o instante em que o Fluminense, nas mãos de Fernando Diniz, escapa das correntes do jogo pragmático, transformando o campo num espetáculo. Galeano diria que o jogo dos tricolores foi uma viagem de retorno ao prazer de jogar só pelo prazer de jogar. Um reencontro com o futebol livre que lembra a alegria infantil, o menino que brinca com a bola de plástico e o gato com o novelo de lã. Para Diniz e seus jogadores, o campo deixou de ser um local de dever e se converteu em um palco de ousadia e alegria – forma que nunca deveria ter deixado de ter.

Esse espetáculo finalmente traria resultado. Os astros se alinharam. A bola nos pés do goleiro não deixava de dar frio na barriga, só que no que cortava a ingênua linha da marcação adversária todo tricolor sabia o quão fatal seria ao cair nos pés do Rei da América, nos pés de German Cano. O filósofo britânico Richard Wollheim não teve a sorte de estar vivo pra ver a aplicação de seus conceitos na pelota.

Diniz molda o Fluminense para ser não apenas um time vencedor, mas uma obra de arte coletiva, onde cada passe carrega intencionalidade e expressão. Coisa que o chutão pra frente não faz.

O jogo não foi apenas uma final; foi a epopéia de um time que se recusou a ceder ao futebol sem alma, preferindo a poesia, maleável. Única expressão que o esporte pode ter sem soterrar a criatividade dos gênios. Única expressão que dá espaço pra alguém sem oportunidade de formação acadêmica ser gênio. Expressão que o futebol europeu, hoje, soterra. Uma geração que é premiada com bola de ouro porque “tem universidade”. Em meio a tanto adubo, Fluminense foi semente. Foi verde. Foi maduro sem ser ingênuo.

Poesia nas cores: Verde, Branco e Grená contra o tradicional azul y amarillo argentino, após ter derrotado o alvirrubro (tão argentino quanto) com 5 gols na fase de grupos. Cores vivas. Poesia no gol: o garoto-problema é quem vinga a desonestidade da história em pleno Club da fidalguia, disruptivo sem perdê-la. Poesia nas coincidências: a final seria realizada no mesmo palco do maior trauma esportivo depois da Copa de 50, no mesmo Maraca.

Fábio; Samuel Xavier (Guga, 39’/2T), Nino, Felipe Melo (Marlon, 6’/2T) e Marcelo (Diogo Barbosa, 34’/2T); André, Martinelli (Lima, 34’/2T) e Paulo Henrique Ganso (John Kennedy, 34’/2T); John Arias, Germán Cano e Keno. Técnico: Fernando Diniz.

Wollheim também fala de imaginação projetiva, um conceito que explica como o público, ao observar uma obra, projeta-se nela, interpretando e vivenciando-a de modo pessoal. Era a noite que coroava o torcedor do tricolor com essa imaginação projetiva de forma intensa, conectando-se com cada passe, cada movimento, como se fossem mais parte em campo do que normalmente já são. Diniz conseguiu envolver não só seus jogadores, mas também os torcedores, que, com o coração acelerado, não viam apenas um jogo; viam uma narrativa de beleza e luta, uma obra coletiva onde a vitória foi tanto do time quanto de cada tricolor nas arquibancadas.

Tão questionado, naquele 04 de novembro esse futebol ultrapassou a teoria; tornou-se realidade vivida e sentida, uma experiência estética e emocional para todos os que acreditaram na proposta ousada de Diniz. Afinal, a sorte premia os corajosos.

Desde os primeiros toques, o Fluminense carregava em cada passe uma promessa, uma esperança de 121 anos. André, como um guardião, protegia o meio com uma serenidade que acalmava o coração de quem assistia, enquanto Ganso, com a bola nos pés, enxergava o jogo em outra dimensão, lançando Arias e Keno em movimentos que pareciam desafiar a lógica. Na defesa, Felipe Melo, o guerreiro que trazia o peso de tantas batalhas, e Nino, firme e intransponível, erguiam uma muralha inabalável. E então, aos 36 minutos, o destino nos presenteou: Keno, em um lance pela direita, lançou rasteiro para Cano, que com um toque preciso fez o Maracanã parar por um segundo eterno, antes de explodir em puro delírio.

Cano ergueu os braços junto com outros milhões, dedo indicador pro alto e polegar fazendo 90°, gesto que ia além dos filhos; era para a história, para cada torcedor que sonhou com esse momento. Naquele instante, toda a espera, toda a paixão e todos os corações tricolores se uniram para o mais intenso “Para pra ver que começou o show do meu tricolor!”.

E o gol de Advíncula, esse quase intruso na narrativa que o Fluminense tecia? Em um chute improvável e preciso, o lateral do Boca empatou o jogo no segundo tempo, um golpe que fazendo o Maracanã engolir seco, provocou um instante de questionamento coletivo. Flashbacks na cabeça de cada tricolor tal qual um ex-veterano do Vietnã. Rupturas numa obra são tão importantes quanto seus momentos de harmonia, e esse gol trouxe a tensão dramática necessária para engrandecer o desfecho que viria. Foi o antagonista perfeito para o herói que surgiria em Kennedy, uma virada emocional que fez o gol da vitória na prorrogação ter ainda mais força e sentido. Pá-pum. Pra eternidade.

Por fim, a trave que impediu Guga de ampliar o placar no último minuto da prorrogação pareceu quase uma ironia do destino, como se o futebol, em sua dramaturgia própria, preferisse a emoção do risco. Não ousou tirar o holofote de JK naquela noite. Naquele chute que caprichosamente tocou a trave e se negou a entrar, estava a essência na estética do imprevisto, onde a beleza do momento se eleva pela possibilidade do fracasso. A trave não foi apenas um obstáculo; foi o último toque de suspense, deixando todos na expectativa, até o apito final liberar a explosão de alegria. Campeões da América em pleno Maracanã. Fluminense Football Club.

Finalista do Mundial de Clubes da FIFA, a equipe-arte só foi superada pelo City, aquele clube inglês que se tornou organismo podre com injeções financeiras de oligarquia árabe. Petrodólares não impediriam que o Maracanã voltasse a transbordar com o exorcismo da Recopa e a consolidação final de John Árias. Se alguém fosse louco de não o reconhecer como ídolo, depois de lá não existia mais hospício. Aquela noite ainda brilhava com a lua do Quatro de Novembro. E a próxima também. Hoje, na mesma. E continua sendo. Todo dia é.

O verde, branco e grená das bandeiras flamulando ainda ecoam nos corredores do maior templo que o esporte já viu. Ainda desce a lágrima de alegria e ainda aperta o abraço no estranho que veste a mesma camisa, passada de pai pra filho, com FFC no peito.

Alguns cresceram com o quatro de novembro.
Alguns se foram com o quatro de novembro.

Todos os tricolores, vivos e mortos, no céu e no inferno, venceram junto de Galeano, Willhoem e Diniz. O Fluminense relembrou ao mundo não como se joga, mas sim o que há de melhor no esporte mais popular. Um suspiro do futebol euforia que abençoou a seleção canarinho com cinco Copas. Um feriado no Rio de Janeiro que faz sol pra onde o Redentor abre os braços. Um troféu a mais na sala e o significado maior do que cada jogador eternizado: a América tricolor de coração, fascinando pela sua disciplina. Distribuindo salves ao querido pavilhão, às três cores traduzindo enfaticamente: tradição. Erguendo a cabeça e metendo o pé em paz, esperança, e vigor.

1 Comments

Comments are closed.