Henrique Dourado e o árabe tricolor (por Paulo-Roberto Andel)

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I

Henrique Dourado foi embora de vez. Para o rival.

Uma pena. Podia ter marcado época no Fluminense, caso tivesse contrariado a trajetória de sua carreira e então permanecido mais uma temporada – ou outras – com a camisa tricolor.

Teve um início tíbio no Flu, superado por uma boa jornada em 2017.

Topou o rabo de foguete que era tentar preencher a lacuna deixada por Fred. Se jamais poderia fazê-lo em termos técnicos, cumpriu seu dever de artilheiro com respeito e dedicação.

Simples, simpático, carismático, tendo cativado as crianças, ficou a salvo do mau percurso tricolor no ano passado, garfado na final do Carioca, depois fracassado na Sul-Americana e, por fim, com um péssimo desempenho no Brasileiro.

Lutou muito em campo, tanto para superar as deficiências da equipe quanto as próprias. Nunca fugiu da briga e certamente viu alguns companheiros com a camisa seca no gramado, enquanto ele saía encharcado de suor.

Tinha tudo para ser uma nova versão de um dos grandes artilheiros tricolores: Super Ézio. Isso, caso quisesse.

Só que o caminho foi outro e o jogador nem pode ser condenado por isso. Dourado priorizou seu conforto pessoal, seus vencimentos, sua família, independentemente de seu vultoso salário. Ok, o clube falhou em seus compromissos, mas a situação esteve muito longe da de um sofrido trabalhador esfomeado pela falta de pagamento. De toda forma, nunca mais existirá um Ézio: que jogador hoje em dia assinaria um contrato em branco com um clube de futebol?

Dado o momento de enormes dificuldades que o Fluminense passa, é certo que será preciso repor o camisa 9 tão breve quanto possível. Mas é bom que se diga: se Dourado vai deixar saudades, especialmente na hora de deslocar os goleiros no tiro fatal, seus bons números com a camisa do Flu nem de longe significaram o sucesso do time. Já tivemos N casos de artilheiros com a mesma performance ou superior, na fria análise dos números.

Dourado tem 28 anos e jogou por 13 equipes diferentes até chegar ao Fluminense.

Marcou 111 gols na carreira em 279 jogos, dos quais 34 pelo Flu (sendo 11 de pênalti) em uma temporada e meia, exatamente 75 partidas. Ou seja, pelo Tricolor, Dourado fez mais de 30% dos gols de toda a sua carreira. Seu aproveitamento com a camisa do Fluminense foi de 49,78%, tendo sido artilheiro do Brasileirão pelo Flu em 2017, além de ter ganho a Taça Guanabara no mesmo ano.

É fácil concluir que a distribuição dos outros 77 gols foi regularmente menor em todos os clubes anteriores à sua titularidade no ataque do Fluminense – sua segunda melhor marca foi no Palmeiras, com 18. Talvez o popular ponto fora da curva quando vestiu o manto das Laranjeiras. Será? Não é possível cravar, mas só o tempo dirá.

A seguir, três exemplos de jogadores que vestiram nossa camisa com total dignidade, muito empenho e recursos técnicos modestos, jogando também em times limitados, apresentando campanhas superiores à de Dourado e números muito parecidos.

Wagner jogou menos de dois anos pelo Fluminense, saindo em 1993. Jogador de muito empenho no ataque, fez 37 gols, três a mais do que Dourado, em 89 jogos pelo clube e aproveitamento de 56,55%. Duas vezes vice-campeão carioca e também vice-campeão da Copa do Brasil, na garfadíssima final diante do Inter de Porto Alegre. Seu número de gols pode parecer baixo para um jogador de ataque, mas a explicação é absolutamente outra: ele era o principal municiador de ninguém menos do que Super Ézio.

Entre 2000 e 2002, Agnaldo (o memorável “Agnight”) defendeu a camisa do Fluminense em 94 jogos, marcando 48 gols. Foi campeão do Centenário, mas não disputou a final. Em campo, teve um aproveitamento de 60,99%. Naquela época o Fluminense teve um bom desempenho na Copa João Havelange e disputou duas finais consecutivas de campeonatos brasileiros, em 2001 e 2002 (neste, o artilheiro já havia saído do clube).

O grande Tuta jogou as temporadas de 2005 e 2006 pelo Fluminense. No primeiro ano foi campeão carioca, vice-campeão da Copa do Brasil e só não jogou a Libertadores por causa de uma famosa horcadice (avisando que trocaria todo o time nas férias). Em 2006 o Flu foi opaco e, apesar da opulência da patrocinadora Unimed à época, lutou contra o rebaixamento. Tuta foi um lutador valente, marcou 51 gols em 111 partidas e teve um aproveitamento de 49,55%.

As comparações de 2009 a 2016 não cabem porque, neste período, a camisa 9 foi monopolizada por Fred, artilheiro inconteste.

Resumo da ópera: Dourado cumpriu seus compromissos tricolores com afinco e marcou gols, mas com exceção de sua excelente performance nos pênaltis – das melhores da história das Laranjeiras, mas uma marca individual -, não escreveu nenhum capítulo dos grandes dias do Fluminense.

É claro que poderia ter escrito se ficasse mais, porém não quis. Exerceu a sua opção, a sua vontade.

É claro que seria melhor tê-lo, mas se o caso é outro, havendo boa vontade e recursos, está longe de ser insubstituível, e a reposição deve ser uma das metas do Fluminense para anteontem.

A título de curiosidade, Hernane Brocador – descartado por Abel ontem – fez 28 gols em 64 partidas pelo Bahia, nas temporadas de 2016 e 2017. Quando atuou pelo rival da Gávea, tinha marcado 45 gols em 87 jogos. Às vésperas dos 32 anos de idade, em sua carreira Hernane marcou 133 gols em 276 jogos profissionais, 22 gols a mais do que Dourado, tendo jogado três partidas a menos.

Uma inevitável pergunta: se o rival da Gávea tem nadado tanto em dinheiro assim, afora uma administração tida como invejável, por que diabos o Mais Querido da imprensa esportiva pagará a contratação de forma parcelada ao Flu?

OBS: estatísticas acima com intervalo de confiança de 99%, sujeitas a eventual retificação. Fontes: fluzao.info e Wikipedia.

II

Eu já o tinha visto pelos arredores do meu prédio em algumas oportunidades.

Em tempos onde tudo é conceito e, por que não dizer, pré-conceito, imediatamente vêm à tona as impressões e as referências que todos carregamos à mente, naturalmente pelo que também vemos por toda parte.

Um sujeito alto, bem alto, quase com dois metros de altura, magro, cabelos nem tão baixos e uma barba preta gigantesca, talvez com meio metro.

Jogador de basquete? Fundamentalista estilo Osama Bin Laden? Um terroristão? Roqueiro fã do System Of A Down ou do Los Hermanos? Podia não ser nada disso, apenas o estilo de um carioca vagando pelo Centro.

Enfim, uma vez estava na feira, outra na banca de jornais, outra no mercadinho a duas quadras. Era uma figura familiar do ponto de vista fisionômico e da paisagem. Num bairro como Copacabana isso é muito comum: você vê uma pessoa por anos e anos, sem saber seu nome, mas encontrá-la nos mais diversos ambientes – da missa de domingo a uma noitada na Prado Júnior – e vocês trocam sobrancelhas levantadas como cumprimento. No Centro é mais difícil: não há praia, as pessoas vêm e vão com certa pressa, se você não conhece a turma de infância ficando fora do circuito. E eu que venho e vou do escritório para casa à noite, às vezes depois de viagens de 400, 600 ou 1.000 km, tenho como principais amigos de prédio os funcionários, é com eles que converso sempre.

Aí vieram os dois jogos do Flu nesta semana. Duas vitórias suadas, difíceis, sofríveis, tropeçando na bola, mas vitórias. Posso assegurar: na era dos rebaixamentos dos anos 1990, não faltaram jogos onde o Fluminense jogou bem, pressionou e… perdeu. Então prefiro estar mal e vencer. A coisa não está fácil, nada fácil, só nos resta torcer, isto é, para quem torce. O gol no finzinho contra a Caldense tirou um nó da garganta. Não é nada, não é nada, mas empatar teria sido muito pior. Perder então… Vida que segue.

Manhãzinha, hora de ir para o trabalho, vitamina de banana com aveia, beijo na esposa, discos de jazz para ouvir durante o longo processo de cálculos, pego o elevador vermelho e desço. A uns cinquenta metros da portaria, quem vejo? O sujeito magro, altíssimo, com sua superbarba, trazendo pela mão seu pequeno filho.

Os dois com camisa do FLUMINENSE em plena manhã de quinta-feira meio morna, meio clara, meio a nublar, depois de uma vitória magra com atuação complicada.

Feliz da vida, cumprimentei o pai e disse-lhe algo como “É isso aí, o Fluzão tem que melhorar mas vencer foi ótimo”.

A resposta foi um tanto embolada: “Ajfhsnrgrr Nens”. E o sorriso se abriu. Acenou, o garotinho ficou olhando com felicidade, fiz um cumprimento que sugerindo bom dia, eles se foram rumo aos grandes edifícios nas proximidades da Nova Petrobras.

Era evidentemente o grunhido de um estrangeiro, provavelmente árabe. Não pudemos conversar nada por motivos óbvios.

Nem jogador de basquete, nem fundamentalista nem roqueiro do Los Hermanos. Apenas um pai de família que veio do outro lado do mundo e, ao chegar aqui nesta terra de tantas dificuldades, mas também de algumas alegrias, vivenciou de novo o futebol. Com tantos times pelo Brasil afora, calhou de escolher justamente a camisa do nosso time para vestir e ensinar ao filho.

Depois de tanto ódio, tanto interesse vil, tanta covardia, tanta gente picareta que só usa o nome do Flu para pretensões pessoais (não confundir com o justo protesto de 99,9999% da torcida), tanta mentira e dissimulação que se vê por aí quando o assunto é o nosso Fluminense, não posso negar que pequenas experiências como essa me fornecem combustível para passar por cima de qualquer maré negativa, qualquer baixo astral ou escrotidão. Um banho de sal grosso ISO 50.000.

Justamente depois de um jogo onde se viu certo silêncio de muita gente que vive a espalhar cólera, mas não comemora vitórias, tudo muito bem contado pelo Tiba AQUI, não deixa de ser irônico ter encontrado um gesto de amor ao Fluzão vindo de quem mal sabe falar Português, mas se encanta assim mesmo com a nossa camisa. Por que não tirei uma bendita foto, Senhor? Droga!

Onde as três cores são nome, existe um coração pulsando, familiar a milhões. O Fluminense vive, o Fluminense está em riste.

Estou feliz por um dia: não consegui trocar uma frase com o transeunte, mas voltei a viver os dias em que tricolor encontrava tricolor na rua e oferecia uma saudação, um abraço.

Bora que lá vem Macaé. A vida é isso.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

#JuntosPeloFlu

Imagem: rap

5 Comments

  1. Essas são as verdadeiras lições da vida. Nada como ter em nossas fileiras gente que sofreu longe, que teve que sair de sua própria terra, que luta fortemente para fazer daqui um lar. Nós temos uma história tão rica, mas que a sanha por poder quer minimizar. Ainda bem que vem, do aparente nada, uma luz na escuridão das desavenças.

  2. O melhor dessa história mesmo, foi eliminar a time de remo treinado pelo Cláudio Garcia, com aquele gol do Assis “Carrasco”, aos 45 do segundo tempo. Bem que o raio poderia cair novamente.
    Abraço, Andel!

  3. Bom dia, Paulo. Aqui, em Curitiba, terra de paulistas e atleticanos ainda ressentidos, eventualmente me surpreendo com heróis vestindo nossas cores. A sensação arrepia. Agora, Dourado, itinerante, perdeu uma chance única que, por certo, irá lhe cobrar adiante. Lembro do Cláudio Garcia em 83. Abraços.

    1. Andel: belíssima lembrança, Jurandyr. Cláudio Garcia era um craque, depois virou treinador campeão mas acabou jogando tudo fora.

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