Um encontro entre Nelson Rodrigues e Stanislaw Ponte Preta (por Paulo-Roberto Andel)

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Os dois grandes cronistas, Nelson Rodrigues e Sérgio Porto – Stanislaw Ponte Preta – combinaram de tomar um café na saída da redação. Miraram na Casa Villarino. Tudo bem que não havia qualquer vestígio de empresa jornalística das boas na região, mas hoje em dia o Uber e o bonde moderno chamado VLT resolvem quase tudo, exceto quando a gangue de pivetes vem com vinte ou trinta cabeças e polícia não há, até porque ela não está em quase nenhum lugar nessa Unidade da Federação marcada pela penúria. Antes que o mais desatento encontre estranheza nestas linhas, é importante dizer que Nelson faleceu em dezembro de 1980 e Sérgio em dezembro de 1968. A pergunta é: E daí? São dois tricolores de coração, geniais, consagrados e isso lhes basta para vivenciarem a perenidade, nem que seja nas páginas deste modesto blog de literatura que um ou outro desgraçado teima em ver como rebaixado. Foram de espírito presente, pois.

A poucos dias do fim de um ano conturbado, que poderia ter sido melhor, e termina com xingamentos e agressões verbais entre tricolores por causa da disputa eleitoral no clube, enquanto o nosso time chega às estações finais sem qualquer viço, o melhor é sonhar com um reencontro de gênios para que a água pura leve as veias do Fluminense. Assim sendo, vamos ao bar.

A Casa Villarino tem boas iguarias e um sabor de antigamente. Lá, Vinicius de Moraes tocou o terror em drinques estratosféricos – e também conheceu Tom Jobim, um tricolor, numa parceria que ia dar pano para duas mil mangas. Agora o estabelecimento fecha cedo, os grandes boêmios disseram adeus, o país está em crise, as contas arrasadas, a corrupção rola solta enquanto as panelas seguem numa mudez lancinante.

Por volta de sete e meia da noite, nossos queridos espíritos chegam das redações e trocam um abraço fraterno. Nelson, com aquele olhar de realismo fantástico de sempre, que pode ser reconhecido nas fisionomias de muitos de seus familiares. Sérgio, com seu terno elegante e ar de gallant, homem do futebol de praia que sempre foi e também um atleta do Fluminense. Está desfraldada a mesa mais tricolor do coração do centro da cidade do Rio de Janeiro. Sentam, pedem o café ao garçom, são os únicos clientes da casa.

Conversam do Fluminense de antigamente e mostram desapontamento com a situação atual. Entretanto, não movem um milímetro na crença de que o Tricolor há de recuperar terreno em todos os campeonatos de football que vier a disputar. Em campo, o time vai mal das pernas. Nelson é um otimista irreversível e elegantemente não critica nenhum nome – a depender dele, até Henrique Dourado tem cura da bola. Sérgio, não: irreverente que ele só, desanda a falar das caneladas e trombadas que viu neste 2016, mesmo sem deixar de respeitar a efêmera fase de conquista da Primeira Liga.

Quando o assunto é política do clube, Nelson tem a prudência de declarar respeito a todos os candidatos à presidência, esperando que o vencedor à altura das tradições das Laranjeiras – e para ele tradição é o que viu de 1920 a 1980, sessenta anos de Fluminense no vente, nos cigarros, nos cafés – mais um! – em bifes de sonho. Não esperem a mesma cerimônia de Stanislaw Ponte Preta em três atos. No primeiro, diz que o candidato Alfa tem um plano para as receitas do clube em três anos, no valor de um bilhão de reais – em dívidas. No segundo, pergunta se o candidato Beta não deveria concorrer à Firjan em vez do Fluminense, tamanha a quantidade de empresas que dirige. Último ato: o Gama não era opositor do Teta? A única coisa valorosa no homem é a contradição, diria Enrico Bianco.

Em certo momento, Nelson mais escuta do que fala. Observa Sérgio como o verdadeiro showman que é, gesticulando, narrando, rindo e quase cantando. Os craques de antigamente, os jogos acolhedores em Laranjeiras e General Severiano, a imponência do Maracanã de Didi – o Príncipe Etíope -, a grande resenha Facit e as colunas imperdíveis nos grandes jornais do Rio de Janeiro, que todo mundo corria para comprar nas bancas – agora a moda é internet, blogueiros, candidatos a subcelebridades, oportunistas de plantão, papagaios de pirata e outras quinquilharias humanas não relacionadas. O discípulo aborda o mestre e pergunta “Vamos escrever num blog?”. A resposta é direta: “Cito Umberto Eco: ‘Normalmente, eles (os imbecis) eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel’. E mais: ‘O drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia à condição de portador da verdade’”.

Três xícaras para cada um, os sorrisos, alguma melancolia e a sentença final cabe ao maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos. Sérgio recorda que falaram basicamente de futebol, de recordações e de tempos inesquecíveis, mas, ao mesmo tempo em que ainda respiram seus dias de glórias, os dois gênios são afetados por esta vida carioca de hoje, ofegante, com a violência em obesidade mórbida, o ódio pelas ruas, a selvageria que vai das palafitas às luxuosas coberturas da orla carioca, de onde se pode ver belas mulheres que, um dia, suspiravam ao posto de uma das “Certinhas do Lalau”:

“Meu nobre Nelson Rodrigues, o que é o ser humano nesta terra de litorais, pontais, solidão e hipocrisia únicas?”

“O ser humano é o único que se falsifica. Um tigre há de ser tigre eternamente. Um leão há de preservar, até morrer, o seu nobilíssimo rugido. E assim o sapo nasce sapo e como tal envelhece e fenece. Nunca vi um marreco que virasse outra coisa. Mas o ser humano pode, sim, desumanizar-se. Ele se falsifica e, ao mesmo tempo, falsifica o mundo.”

“É, meu caro Nelson, éramos mais unidos aos domingos.”

Trocam um abraço fraterno, sorriem, Nelson fica de realizar uma adaptação de texto para o teatro do inesquecível “Febeapá”. Sérgio reitera o convite para um blog. Novo abraço, gargalhadas mútuas e, perto das 21 horas, fecham a conta para deixarem a Casa Villarino. Curiosamente, desta vez os arredores não estão sofrendo nenhum arrastão, não há gente sofrida debaixo das marquises, não há sequer pessoas na rua ou um carro que passe. Parece um outro tempo, com tempero de outrora, antigamente demais. Outro Rio.

Uma coisa estranha e francamente atual: ao trazer a conta, o garçom não tem a menor ideia de quem são seus clientes. À primeira e última vistas, o que lhe parece é uma dupla de advogados ou empresários com escritório de nome pomposo da região. Não chegam a ser próceres da diplomacia estadunidense, vizinha da Villarino.

Olham um para o outro, pensam em tudo o que viveram e testemunharam, reconhecem no Fluminense o grande laço que os une. Contemplam o passado. O passado. Ficam de marcar uma nova prosa, sem data definida. Sérgio insiste: “Não esqueça do nosso FEBEAPÁ, Nelson!”

Deixado o bar imortal, eles tomam a Avenida Calógeras em caminhada sóbria, em calçadas diferentes e, aos poucos, desaparecem no horizonte destas últimas linhas, porque o caminho à eternidade ainda leva pelo menos uma hora depois do embarque no Metrô Cinelândia, seja lá qual for a direção – exceto no Metrô Barra que, como todos sabem, cerra suas portas mais cedo.

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A vingança é um sentimento tão estúpido, mas tão estúpido, que leva os dominados por ela aos gestos e declarações mais estapafúrdias e insensatas que se possa imaginar, até para justificar uma simples opinião ou palpite.

Definitivamente, o Fluminense não rima com vingança e menos ainda com estupidez.

Para Nelson Rodrigues? O óbvio ululante.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri @pauloandel

Imagem: pp/nr

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