O sofrimento e o banal (por Mauro Jácome)

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O radinho foi a minha primeira Copa. Tinha 10 anos. Na minha cidade, muito pequena, interior longínquo, pouco se falava de Copa. Nem mesmo de futebol. Éramos isolados do mundo. Quase uma ilha. Muitos outros lugarejos eram assim. Um latido aqui, outro ali; um cacarejo, um relincho ou um mugido quebravam o silêncio quase que eterno.

Comecei a acompanhar futebol porque gostava de “passear” pelas estações do aparelhinho. Certa vez, num domingo à tarde, fechado no meu quarto, viajando no variados sons, parei num quase interminável grito. Goooooooooooooooooooool. O que era gol? O jogo seguiu. Fui atrás. Nada entendia. Continuei. Ainda teve mais um daquele comprido grito de gol. Aquilo me deixou fascinado. Descobri, ali, um novo sentido de vida. Todo domingo, religiosamente no final da tarde, ligava meu radinho.

Um dia, escutei sobre um campeonato diferente. Copa do Mundo. Vai acontecer. Já tinha noção do que significava o futebol. Começava a ficar contagiado com sua magia e atração. Lógico, dentro da ingenuidade de uma criança. À medida que o tempo passava, ficava assustado com tamanha importância que se dava. Achava que essa tal Copa era sempre aqui. Depois, fiquei sabendo que nem sempre. Que nunca antes. Era a primeira vez.

Foi se aproximando o dia da Copa. Depois, descobri que eram vários jogos. E que não eram aqueles times que ouvia nas tardes de domingo. Eram umas tais “seleções”. Os melhores dos países. O que era um país? Ouvia um nome, outro. Um monte de Brasil espalhado pelo mundo. E a nossa Seleção? Eram tantos “os melhores”! Vão todos? Estavam levantando um tal de Maracanã. Imenso, gigante, que cabia um país dentro. Imaginava-o como a mata mais a terra mais o rio mais o sol, enfim, até onde minha vista podia alcançar. Parecia que o Brasil todo estaria lá. Menos eu e o lado de cá do meu radinho.

Vai começar a Copa. A ansiedade me deixava atordoado. A mão suava. O México estava do lado de lá. O nosso scratch era uma mistura de nomes que ouvia nas tardes de domingo com outros, por mim, desconhecidos. Quatro longos gritos de gol. Muito mais longos do que os dos times. A Seleção é mais importante? Suíça, Iugoslávia. Vaias e aplausos. Ouvia que era assim. Classificado para a fase final! Ouvia que era assim. Suécia. 7 a 1. Não sabia que podia chegar a tanto. Na minha curta vida de torcedor, zero a zero, um a zero, dois a zero, no máximo, cinco. Nunca mais do que isso. Como pode numa Copa do Mundo, com os melhores de todos os Brasis, uma seleção perder de 7 a 1. Depois os espanhóis. Há de ser diferente. Não foi: seis. E ainda teve a “Touradas de Madri”. Como pode? Entendi o porquê de tanta euforia. Éramos imbatíveis. Esse Brasil daqui era o melhor. Só faltava um. Só mais um. Mas é como se nada mais faltasse para sermos os melhores. A taça do mundo já era nossa. O que era uma taça? Ninguém me explicava. O imaginário folheava as possibilidades da mente de uma criança. De alguém que nunca vira nada além de bichos, algumas gentes, mato, água, céu, sol, noite, lua, chuva e um radinho.

Naquele dia 16 de julho de 1950, dentro do meu quarto fechado, eu estava sentado na minha arquibancada de cimento, dentro do meu Maracanã, no meu Rio de Janeiro, do meu Brasil. Por mais que eu, naquele pedaço de mundo, só meu, tentasse me ver naquela multidão de duzentos mil, era o que eu ouvia, não conseguia definir uma imagem. A cada frase que vinha do autofalante, eu me imaginava de forma diferente naquele cenário de sonho. O foguetório quando o time entrou em campo foi acompanhado por um solitário próximo a mim, da minha casa, do meu quarto fechado. Tinha mais alguém ali, naquele fim de mundo, naquele brasil do Brasil, que também se imaginava lá naquela multidão. Quem seria o outro solitário torcedor? A bola rola. De dentro do rádio, eles tinham a capacidade de nos fazer viver junto aos craques. Corria com eles. Defendia com eles. Sofria falta com eles. O que era uma falta? Friaça e gol. Nunca um gol foi tão duradouro. Perdia o fôlego pelo narrador. Impossível acompanhá-lo. Mais fácil driblar feito Zizinho, correr igual ao Ademir, do que gritar tão longe assim. Nunca um gol foi tão curto. “Está empatada a peleja”. Assustado. Todos estávamos assustados. Eu, Zizinho, Friaça, Chico, Augusto, Ademir, Barbosa. Podia ver o medo nos seus rostos. Da forma que fossem seus rostos nas minhas visões. Nunca um gol foi tão duro. “Didia”. Maldito uruguaio. “Didia”. Maldito estrangeiro. O Barbosa podia ter defendido. A bola passou entre ele e a trave. Ouvia assim. Cresceu em mim, naquela criança solitária, uma raiva do “Didia” e do Barbosa. Porque ele chutou? Porque ele não defendeu? Ouvia assim, sentia assim. Arrastava os pés pelo quintal, levantando poeira, imaginando as rampas do Maracanã. O que eram rampas? Chorava junto com os duzentos mil no Maracanã. Porque o “Didia” e o Barbosa faziam tanta gente sofrer? Não sabia o que eram “duzentos mil torcedores”, quantos eus aquilo representava, mas chorava também. Imaginava um rio de lágrimas inundando o Maracanã até virar uma grande lagoa de sofrimento. Não se brinca com o sofrimento das pessoas. Porque o “Didia” e o Barbosa faziam tanta gente sofrer? Imaginei horas, dias, semanas, meses de silêncio. Não tinha coragem de ligar o radinho às cinco horas das tardes dos domingos seguintes. Tinha medo de não ter mais futebol, de o sofrimento ter acabado com o futebol. Não havia mais lugar para as alegrias das tardes de domingo. “Didia” e Barbosa acabaram com tudo.

8 de julho. 64 anos depois daquele dia em que “Didia” e Barbosa me fizeram sofrer tanto quanto os outros “duzentos mil”, estou novamente incrédulo com o que acabava de ver e ouvir. Ainda tinha um radinho. Não mais aquele, mas era um radinho. Não me acostumei, ainda, com o som da TV. Concentrava-me no radinho. Agora, eu via. Todas aquelas imagens que construíra no meu quarto fechado não existem mais. Foram trocadas pelos fatos. Os olhos não querem mais me deixar sonhar. Então, fecho-os e ouço o meu radinho. Imagino. Crio as minhas fantasias, mesmo que as imagens as desmintam. Fecho de novo.

Fim do jogo. Lembro-me dos 7 a 1 contra a Suécia. O mesmo placar, só que, agora, vem de encontro a mim. A felicidade, a euforia daquele dia já perdido no tempo, hoje, está na contramão. Novamente, aquela tristeza. “Didia” e Barbosa estão de volta. Agora, são muitos “Didias”, muitos Barbosas. Também, não são mais “duzentos mil”. São milhões. Hoje, tenho a noção exata desses números. São milhões que choram. Imagino.

De repente, a minha volta, ninguém chora. Só eu choro. Ninguém chora. Filhos, genros, noras, amigos dos filhos, dos genros, das noras, netos, muitos netos. Não existe mais um quarto fechado. Existe uma sala. Imensa sala. Uma enorme TV, que me faz sentir na arquibancada. Não existe mais aquele Maracanã que só eu conhecia. São muitos maracanãs. Menores, mas todos belos, imponentes, imensos. Diferentes daquele que eu construíra. Ninguém chora. Uns saem como se nada tivesse acontecido. Não há “Didia”, nem Barbosa. Todos são “Didia” e Barbosa. Beira ao banal.

Qualquer um pode ser “Didia” e Barbosa. Ninguém chora. Pelo contrário, riem! Com podem rir da minha situação? Por que ninguém mais sofre? Por que ninguém tem um radinho colado ao ouvido? Por que todos dividem os olhos entre a TV e os celulares? A cada gol, em vez de um choro, uma piada. A cada gol, apitam os celulares e todos riem.

Por que não se respeita o sofrimento? Ao final do jogo, em vez de se olharem e buscarem consolo, há a disputa pela melhor piada. Fotos, vídeos, palavras que ridicularizam o sonho de ver o Brasil campeão e levantar a poeira do quintal com pulos de alegria. Por que ninguém se importa com o sofrimento dos “duzentos mil”? Por que a necessidade de pisar na autoestima? Por que perdemos o direito de ser felizes com o bom? Por que estamos condenados a ser felizes com o ruim? Por que tudo ficou tão banal?

Panorama Tricolor

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