#SomosTodosHipócritas (por Walace Cestari)

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As hashtags invadiram o mundo do futebol. A manifestação racista em um estádio espanhol e a reação de Daniel Alves geraram um alvoroço na mídia. Se espontâneo, o ato de comer a banana arremessada do lateral do Barcelona foi espetacular. Curioso é perceber que havia todo um planejamento em torno da resposta e uma campanha publicitária já no gatilho, à espera do mote. É sempre assim: em um enterro, enquanto alguns choram o morto, outros se aproveitam para vender lencinhos.

Não somos todos macacos. Assim como não somos todos veados. Apesar de, muitas vezes, achar que somos quase todos burros. É preciso, com urgência, discutir a questão das minorias no país, cada vez mais discriminadas e perseguidas por nossa sociedade. Mas não é com ações de marketing, descoladas de discussões de fundo que isso irá acontecer. Somos todos humanos. E, por conta disso mesmo, criamos uma cultura racista e homofóbica (que não existe em outros animais!) que precisa ser combatida com veemência.

É interessante ver que muitos se engajam na luta contra o racismo no futebol. Louvável. Entretanto, há de se ter cuidado para não transformar luta em festa. Hashtags premeditadas, camisetas postas à venda em poucos minutos após o lançamento da campanha, photoshop e artistas. Mais do mesmo. Os meninos pretos das favelas continuam ameaçados por fuzis de traficantes e de policiais. Mas a camiseta chega em dois dias a sua casa. #somostodosotarios

O Fluminense entrou oficialmente na campanha contra o racismo sem bananas e hashtags. Que bom. Sim, os clubes devem se posicionar quanto à questão. Sem outro interesse senão a bandeira da igualdade racial. Eis que, diante da manifestação tricolor, ressurgem as mofadas acusações de nosso suposto passado racista, aliadas à disputa sem sentido pelo pioneirismo negro ou pela supremacia negra nas arquibancadas.

Vale lembrar que os argumentos racistas contra o Fluminense advêm da obra de Mario Filho “O negro no futebol brasileiro”. Em que pese o ineditismo do tema à época, a obra não é definitiva, nem mesmo unanimidade. Mario era romancista (apesar de ter renegado seus escritos) e jornalista em uma época anterior aos “idiotas da objetividade”, forma pela qual seu irmão imortalizou a chegada do estilo objetivo e preso aos fatos do jornalismo norte-americano.

Em momento algum Mario é um historiador, alguém que busca os fatos e trata-os da maneira científica. E é criticado por isso por praticamente todos os historiadores da atualidade. No próprio prefácio do livro, Gilberto Freyre aconselhava Mario a se encaminhar “cada vez mais, através dos estudos mais demorados e mais profundos no assunto”. As críticas dos especialistas contra os métodos investigativos, fontes, tratamento de informações nos levam a entender a obra como um anedotário do esporte, nada mais que isso.

É de lá que surgem histórias como a de Carlos Alberto, que jogou pó de arroz no rosto, pois seria proibido que o Fluminense tivesse jogadores negros. Nada mais falso. Em primeiro lugar, o Fluminense apresentava jogadores negros em seus quadros desde, pelo menos, quatro anos antes, como mostra a foto do time de aspirantes de 1910, reproduzida abaixo:

1910

Como se isso não bastasse, devemos lembrar que foi o Fluminense quem “contratou” Carlos Alberto (não havia profissionalismo, era mais um convite que propriamente um contrato) junto ao América. Ora, se fosse verdade que negros seriam proibidos de jogar no Fluminense, não faria o menor sentido o clube ter “contratado” o rapaz. Ainda na época do rubro, Carlos Alberto já passava o pó de arroz no rosto antes de entrar em campo. E foi em um jogo contra seu ex-clube que a torcida do Diabo da Zona Norte gritou em tom de galhofa, por já conhecer o jogador, “é pó de arroz, é pó de arroz!”

Jogadores negros buscavam se “embranquecer”, seja pelo pó de arroz, seja alisando o cabelo, bem parecido com o que fazem muitos hoje em dia. Não por conta de maior ou menor liberdade em tal ou qual clube, mas por conta de um racismo imperativo na sociedade da época (e que permanece hoje, não acham?). Nunca houve qualquer proibição à participação dos negros nos quadros sociais e atléticos do Fluminense.

Nem mesmo a tão falada questão da Amea é passível de credibilidade. O Bangu já possuía em seu onze iniciais jogadores negros desde 1905 e sempre participou de campeonatos. A reação de Fluminense, Flamengo e Botafogo ao famoso “time de negros” do Vasco da Gama relaciona-se à questão do amadorismo no futebol, como pode ser entendido no estudo do Prof. Dr. Antônio Jorge Soares, disponível aqui: http://citrus.uspnet.usp.br/eef/uploads/arquivo/v13%20n1%20artigo8.pdf

Criam-se verdades para expiar a culpa de toda uma sociedade. Com isso, alguns querem se fazer menos racistas pela responsabilidade alheia. Há de se combater o racismo não só no futebol, mas em toda a sociedade. De pouco vale abraçar campanhas publicitárias, repetir mentiras sobre os outros se continuamos com as pequenas discriminações do dia a dia. É uma sociedade inteira pagando mico ao ser macaca de imitação dos modismos publicitários. No fundo, somos todos hipócritas.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Imagem: http://www.faroldenoticias.com.br/

9 Comments

  1. Sensacional o texto, parabéns! Gostei muito também do livro sobre racismo na década de 20.
    “Uma mentira contada mil vezes torna-se uma verdade.”

  2. Antropologicamente falando somos todos macacos realmente.
    O homem é apenas “o macaco nu”.
    Leia o livro … é de 1967… mas é atualíssimo.

  3. Já senti na pele esse racismo quando apresentei uma namorada negra há 20 anos, hoje esses mesmos parentes que discriminaram-na, devem estar na luta contra o racismo com hastags e bananas em redes sociais.

  4. Imagino uma família de classe alta, pai, mãe e seus filhos, brancos, olhos claros, cabelos lisos saindo de casa com as camisas da campanha contra o racismo, discursos prontos, cidadania a flor da pele.
    Quando um de seus filhos chegam com um negro (a) em casa apresentando como seu namorado (a), sua hpocrisia desfalece, sua cidadania esmorona, seu racismo afloresce.

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