Cresci sendo criticado por ser negro e torcedor do Fluminense. Diziam que meu clube tinha discriminado negros no passado e essa era a origem do pó-de-arroz. Falar de algo tão grave, sem contextualizar é pior ainda. Os tempos eram outros, a escravidão tinha sido abolida não havia muito tempo, mas mesmo assim tínhamos um jogador mulato na equipe. Não quero defender, mas esta era a realidade do começo do século XX. O que me intriga é perceber que mais de 100 anos depois, tudo ainda está presente.
O Brasil passou por uma escravidão de mais de 300 anos. Portanto não é simples erradicar uma cultura que foi tão presente em nossa história. Algo que se mostra ainda mais perigoso é o fato de nos considerarmos em uma “democracia racial”, onde todas as etnias vivem em harmonia, quando, na verdade, o racismo está presente, age de forma velada, porém contundente. Está em piadas disfarçadas de brincadeira inocente. Está na falta de ascensão social. Está na blitz da polícia, nos corredores das universidades, nos altos cargos de empresas, nas novelas, nos tribunais, nas manchetes de jornal, no uniforme das empregadas domésticas, nos rolezinhos, no futebol.
Nos campos de futebol e principalmente nas arquibancadas de todo o mundo, lá estão eles, os preconceituosos, à espera de uma oportunidade para manifestarem seu ódio, sua incompreensão humana, sua incapacidade de raciocínio lógico, a inexistência de caráter e cidadania. Valem-se da companhia de um grupo que valida suas atitudes para que possam perpetuar a intolerância.
Defendo uma causa por razões óbvias. Sofro na pele. Mas não só essa bandeira, muitas outras precisam também ser levantadas. Por que até hoje no Brasil não há jogadores que se declaram gays, já que é do conhecimento de todos que eles existem (e são muitos)? Temem pelas represálias que possam sofrer. As portas fechadas por clubes e torcedores.
O que ocorreu com o jogador Tinga do Cruzeiro no Peru, hoje dificilmente aconteceria em um estádio brasileiro, já que nossos times são majoritariamente negros. Aliás, a sociedade brasileira tem traços negróides em todas as camadas. Mas não é isso apenas. No Brasil, para ser aceito tranquilamente como um afrodescendente bem sucedido, deve ser jogador de futebol ou pagodeiro. Portanto sofrem menos com a ira da torcida.
Inúmeros jogadores brasileiros já passaram pela absurda situação de escutarem torcedores imitarem sons de macacos para ofender os de origem negra. Logo o macaco, animal tão simpático e que tem ligações genéticas com TODOS os seres humanos. Logo ele é usado em tom pejorativo.
O que mais me deixou triste foi perceber que os que ofendiam eram pessoas de origem indígena, povo que foi dizimado na América Latina e que até hoje sofre com preconceito em todo o mundo. Creio que o sentimento de inferioridade que lhes foi imposto ao longo da vida, tenha aflorado naquele momento. Quando viram que poderiam se sentir menos miseráveis ao humilhar outras pessoas, diferente deles na aparência – mas tão parecido nas dificuldades da vida –, humilharam. Talvez façam isso para tentar fugir da própria condição de excluídos. Quero crer nisso ao invés de pensar que o sentimento que levou uma sociedade a abraçar o nazismo possa estar escondido, porém vivo, e que, de alguma forma, ressurja para atormentar o mundo.
Que o futebol possa servir de exemplo para uma mudança que deve acontecer em toda a estrutura da sociedade. Credos, etnias, orientações sexuais, gênero, classe social e qualquer condição que possa servir de base para o preconceito possa sumir do planeta.
Hoje deixei um pouco do futebol de lado. Para mim o futebol é motivo de alegria. Mas quando algo desse tipo acontece, é difícil pensar em coisas boas…
Panorama Tricolor
@PanoramaTri @nestoxavier
Foto: Luka Gonzalez/AFP
Há controvérsias na história do pó-de-arroz. O depoimento de Marcos Carneiro de Mendonça, goleiro do Fluminense na época, contraria as acusações de racismo. Veja no link abaixo.
Fluminense: O surgimento do pó-de-arroz
http://www.youtube.com/watch?v=c0iXVC0xxz8
Até mesmo o livro , o negro e o futebol de mario filho, flamenguista. diz que o pó de arroz era costume da época e não imposição do clube.
Primo, que texto bom. Parabéns. Realmente temos que refletir sobre todo esse “panorama racial”… entristece a alma coisas do gênero! Abraços… sou seu Fã!
Pois é, também fiquei muito triste com isso e também percebi a estranheza de vir de peruanos…peruanos !!! Povo muito massacrado também. Onde o mundo vai parar ?
Nossa historia tricolor realmente tem o caso do pó de arroz mas sempre defendi mesmo dizendo que pelo menos o negro entrava no clube para treinar, o que não acontecia nos outros. Era a federação que não permitia atletas negros.
ST