Escrevi este texto um dia após a derrota do Fluminense para o Vasco da Gama na semana passada. Não, não escreverei especificamente sobre este jogo nem a partida contra o Grêmio, anteontem, e sim sobre sensações que tive e já tenho há mais de 20 anos. Coisas que o futebol proporciona e, creio eu, nada mais possa se comparar. Falo de uma mistura de paixão, raiva, tristeza, euforia, teimosias, manias, superstições e principalmente loucura. É ou não é louco amar ter que odiar nossa defesa há anos?
Sou de uma geração que cresceu no ostracismo, quando ser tricolor era quase como fazer parte de uma sociedade secreta, onde os rituais não poderiam ser revelados e muito menos os nomes de seus membros, com o perigo de serem execrados da Humanidade. Amei nos descensos, nas derrotas humilhantes, nos jogos dignos de várzea, nas administrações catastróficas, nos anos de chumbo das Laranjeiras. Eu era (e talvez ainda seja) a mulher do malandro. A esposa do homem que chega em casa bêbado e cheirando a perfume barato feminino, apanha, é xingada, chora, mas são lágrimas de um lamento por a cada pancada amar ainda mais.
Aprendi a não esperar muito de um time, mesmo tendo calafrios e tremedeiras a cada início de partida. O time na segunda metade da tabela e eu a cantar e vibrar como se disputasse título. Os amigos da escola me ignoravam. Eu era uma pessoa digna de pena na visão deles. “Coitado, torce pro Fluminense. Vira Flamengo.” De lá pra cá muita coisa mudou. Depois do árido período de 1996 até 2000, tivemos a redenção de um Carioca novamente no apagar das luzes em 2005 e do título nacional em 2007, que nos levou ao período de ouro até pelo menos 2012, com ressalvas paras as finais com traços de tragédia grega em 2008 e 2009 contra a mesma LDU, onde experimentei o grito de campeão da América, que está adormecido, não morto. Por isso digo: perto do que passamos, mesmo com a dificuldade atual, os dias de hoje são mares de rosas.
Amei e xinguei Roni e Magno Alves, Tuta, Milton do Ó, Vanin, Gustavo Nery, Rissut, Alê, Agnaldo, Jaílton, Leandro Bonfim, Ciel, assim como ainda aturo Diguinho, Edinho, Gum e Euzébio. Coisa de torcedor fanático. Aliás, o fanático é aquele cara que as pessoas olham com pena ou descrença. É para os “normais” um ser acéfalo, que não consegue pensar e falar em nada mais do que futebol e que aos 40 anos ainda estará morando com os pais (não que isso seja errado, aliás problema algum).
Da noite de quarta-feira passada (jogo entre Vasco e Fluminense), pouco ficará guardado na memória, pois quase nada vi da partida já que estava trabalhando. Se terá conseqüências no futuro do time é impensável prever. O que posso dizer é que ao vislumbrar aos 10 minutos do primeiro tempo o placar marcando a vitória para o time adversário, que no caso é nosso rival na cidade, vencendo o jogo com um gol do falado pior zagueiro do campeonato, tive que chegar a conclusão que: piores são os nossos, que deixaram ele sozinho na área. Pior são as mães e pais desses rapazes que os colocaram no mundo, melhor, pior foi o técnico da escolinha de base que os deixaram permanecer no futebol…não, não, pior o dirigente, que por total inaptidão para o futebol, acaba por contratar jogadores que o fazem lembrar da sua própria imagem em campo, na verdade melhor o futebol, que permite que pessoas com claras dificuldades de aprendizado, locomoção e coordenação motora possam ser considerados atletas profissionais.
O discurso do último parágrafo nada mais é do que a voz das arquibancadas. Assim somos ao assistir uma partida de futebol: sem regras, sem papas na língua, destrinchando um vocabulário jocoso, para dizer menos, contra jogadores, árbitros, mães de árbitros, dirigentes, deputados, a Dilma, o Cabral, o Paes e quem mais surgir na mente. Onde mais é possível protestar sem levar um tiro de borracha no olho? Só as arquibancadas ainda permitem, mesmo com o Padrão Fifa, o extravaso das angústias e decepções humanas. Quando xingamos o Diguinho, na verdade o sentimento é contra a situação da educação pública. Ao invés do Edinho, vemos o STF zombar da cara do brasileiro no julgamento do mensalão. Leandro Euzébio recebe a carga dos revoltados pela miséria de milhões de cidadãos do país e assim por diante. Somente os gigantes de concreto ainda escutam nossas lamentações. Quem acha que futebol é alegria não entende o jogo. Futebol tem dor, tensão, medo e raiva, às vezes entrecortado por flashes de euforia.
Experimente ir ao estádio e ficar de costas para o campo, observando apenas os semblantes dos torcedores. O que você verá? Roer de unhas, feições tesas, pranto, olhos crivados de pavor e raiva. A mesma platéia que se chocava com Sófocles em 442 A.C. hoje lota estádios a procura de sofrimento. Amamos sofrer. Como explicar o Maracanã lotado no dia 8 de novembro de 2009, com o time na zona de rebaixamento, jogando contra o líder do campeonato em uma tarde de calor passando dos 40°C? Dizemos sonhar com a glória, mas é na iminência da morte que nos mostramos mais fortes e empolgados.
Quem é o torcedor do Fluminense senão um fanático? Até louco, diria. Somos sobretudo amantes, sempre enamorados de primeira infância, quando amar significa chorar para sobreviver. Um gol do Fluminense é para mim o seio farto de leite a me alimentar, porém é no grito instintivo de fome que me aproximo do homem que sou hoje.
Panorama Tricolor
@PanoramaTri
Imagem: alemdasquatrolinhas.blogspot
Parabéns pelo texto. Belíssimo.ST.
Andel: Impecável, Ernie!
O urro abafado de uma torcida no Maraca é um dos sons mais arrepiantes que já ouvi.
Parabéns pelo texto.
Qualquer torcida caberia nele.
Grande abraço!