Vida e êxtase… (por Waldir Barbosa Jr.)

 

… de Benevides Batalha  

Vão-se as torcidas, vão-se as eras, mas o Fluminense fica e ficará senhores,

mesmo depois do último suspiro

(Waldir Barbosa Jr.)

No tempo inscrevem-se as histórias, o desenrolar de batalhas, algumas vencidas, a maioria sinceramente não, e por estas e outras também que julgo meritório tratar de forma resumida da vida e êxtase de alguém que bem poderia ter como amigo, caso amigos tivesse.

Benevides da Silva Batalha, batizado assim por desejo do saudoso pai, um legítimo e indolente representante deste digníssimo clã de jogadores que trouxeram nas costas, nos corações e nos pés a arte primeva do pé na bola, da pura e honesta ginga de corpo, que combateu com raro destemor aqueles que menosprezavam o que antes de ser esporte é visceral expressão da alegria; os Batalha fizeram jus à essência do nome que carregavam e com a alma sangrada pelas pontas afiadas da aristocracia afinal vingaram os que se foram sem ver a arte dos chuta bolas instituída como uníssono esporte mundial.

Benevides agora tinha 18 anos, a maioridade se aproximava, e o legado do pai havia de ser levado ao panteão da imortalidade, e quando soube que o Fluminense faria um clássico no estádio que há pouco havia sido inaugurado, um ano antes de iniciar a década de vinte do século retrasado, nosso menino, não se sabe se pela proximidade, afinal, o Morro do Mundo Novo ficava muito perto do estádio das Laranjeiras – ainda que para ele o itinerário fosse percorrido com asas nos pés -, ou se aquelas cores que representam o clube exerceram sobre ele um poder mágico, uma paixão que um dia despertada jamais fenece ou é dominada, bem provável que a alquimia do grená, quase cor de sangue, o verde um tanto escurecido, como se extraída de um tipo de vegetação selvagem e imorredoura fosse, e o imaculado daquele branco que entre os dois primeiros dava ao conjunto o equilíbrio perfeito, o tenham conquistado para sempre.

Mas como entrar no clube que ainda permanecia arredio aos que do povo emanavam? Como entrar pela porta da frente sem ter quer fingir submissão e confessar pecados que nem havia ainda cometido?

Benevides disse à mãe com todas as sílabas que conhecia de seu precário alfabeto, “que daria um jeito” de assistir ao vivo nas Laranjeiras os que naquela época já ouvia falar como grandes “players” do novo esporte que conquistava a cada ano mais e mais simpatizantes: Mano, Fortes, Machado, Welfare e Cia. já eram para ele como amigos, amigos distantes, era fato, mas para um menino tudo é plausível, e assim construiu sua fábula sem ditos morais ou final feliz, a persistência do rapaz era mesmo admirável, e nesta tarde de “match” decisivo do carioca amador, em que o estádio estava lotado para o clássico com ares de final, contra o arquirrival Flamengo, Benevides conseguiu o que tanto queria: adentrou o gramado acompanhando seus ídolos, não se sabe até hoje como realizou tal feito, mas lá estava ele, serelepe e faceiro, para ficar nos termos da época, feliz como nunca, imortal como nunca, vendo tão de pertinho a bola rolar macia e subserviente àqueles “forwards” e “halfs” de raro talento, sem contar o “goalkeeper” inatingível, Marcos Carneiro de Mendonça, que tinha no nome completo a mesma importância que a alcunha pela qual era ainda mais conhecido: a “Lenda”.

Naquela tarde, de forma esplendorosa, a “Lenda” fecharia a meta e defenderia praticamente o mesmo “penalty” quatro vezes no mesmo lance, em sucessivas tentativas do adversário frustradas por ele em sensacional sequencia de defesas.

O garoto ainda assistiria o grande “goalkeeper” ser ovacionado em seguida ao lance pelos mais de 20.000 que assistiram o “match” de suas vidas; aplaudiria Machado fazendo 1 a 0 num “shoot” quase do meio de campo antes do fim do tempo inicial; não se conteria na segunda etapa vendo o Fluminense massacrar o adversário com Welfare fazendo o segundo, Bacchi iludindo toda a defesa e até o goleiro, antes de concluir em sonora mansidão para o “goal”, registrando um dos mais belos tentos da história do clássico; afinal em pranto verdadeiro veria Machado outra vez colocar a esfera de couro no âmago das eras, decretando solenemente o que ficaria impresso nas traves do tempo como uma das mais humilhantes goleadas imputadas ao “team” adversário.

A noite já tingia tudo de breu, e na recortada paisagem ao fundo representada pelo Morro Mundo Novo, que ficava atrás do estádio – a morada de anjos negros e caídos onde figurava nosso Benevides – uma salva de 21 disparos intermitentes de canhões dava a tudo uma aura de vitória épica, mais uma página escrita com o brio dos heróis que formaram aquele escrete, que honraram o esforço daquele menino com uma das mais extasiantes passagens de sua bela história, por que os homens nascem, guerreiam e morrem, senhores, mas o Fluminense fica e ficará, mesmo depois do último suspiro.

Waldir Barbosa Jr.

Panorama Tricolor

@PanoramaTri

Fonte de pesquisa: Napoleão, Carlos Antônio – Fluminense Football Club, História, conquistas e glórias no futebol. Mauad Editora Ltda. 1ª edição, 2003. Foto retirada da obra acima com tratamento de imagem. 

5 Comments

  1. Gostaria de reparar um lapso imperdoável, segue a escalação do time que jogou o clássico daquele dia frente ao Flamengo, ainda que constem todos os nomes na foto que ilustra o texto: Marcos Carneiro de Mendonça, Vidal, Chico Netto, Laís; Oswaldo Gomes, Fortes, Mano, Zezé, Welfare; Machado e Bacchi.

    O resumo da competição foi:

    Clubes participantes: 10 (dez)
    Campanha: 18 jogos, 17 vitórias, 1 derrota, 68 gols a favor, 20 contra com saldo positivo de 48 gols
    Artilheiro do Campeonato: Braz de Oliveira com 24 gols (São Cristóvão)
    Artilheiro do Fluminense: Welfare (22 gols)
    Técnico: Ramon Platero (uruguaio)
    Presidente do Fluminense: Arnaldo Guinle
    Fonte: Site do Fluminense Football Club

  2. Mauro e Alexandre, obrigado pelos elogios, vindo de gente tão qualificada nos dá alento para continuar “essa luta (com palavras) mais vã/ no entanto lutamos, mal rompe a manhã”. STT, Waldir Barbosa Jr.

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