O que seria do Fluminense se não fosse Nelson Rodrigues? De Antônio Maria se não fosse Dolores Duran? E de Vinícius se não fosse Elizete? O que seria da bossa-nova se não existisse Nara Leão? De Caetano e Gil se não fossem Gal e Bethânia? João Bosco se não fosse Elis? Fausto Fawcett se lhe faltasse Fernanda Abreu? E Arrigo, Tatit e Itamar se não fossem Suzana Salles, Vânia Bastos, Ná Ozzetti e Tetê Espíndola?
Pois hoje conheci um compositor sem intérprete.
Há que se fazer um adendo. Pois quando digo “compositor”, quero me referir a alguém que o tenha sido por toda vida, como se lhe fosse impossível ser qualquer outra coisa. E quando digo “intérprete”, alguém de renome que faça chegar a canção de seu eleito a todos os pontos do país.
Um compositor sem intérprete é como um filho sem mãe. E este a quem me refiro é assim. Chama-se Epaminondas Ferreira da Silva. Mora no bairro do Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro. A cabeça é quase branca. As rugas tomam-lhe a face. Tem mais de duzentas canções acumuladas pelo decorrer dos anos. E todas permanecem inéditas, o que lhes dá um raro frescor: é como se tivessem sido compostas ontem.
Houve um determinado momento de sua existência que o jovem Epaminondas acreditou sinceramente no sucesso. Chegou mesmo a ser produzido por um figurão de destaque na época: o trânsito pelas grandes gravadoras, dava a esse cidadão a fama de fazedor de sucessos.
Não foi o caso. O disco de Epaminondas passou em brancas nuvens. À medida que o tempo foi passando, chegou a desconfiar de que nunca viria a fazer sucesso. Mas, surpreendentemente, isso lhe deu mais ânimo. Compunha diante do abismo. Muitos abandonavam a estrada e ele prosseguia numa teimosia que já virava obsessão.
Não ganhou dinheiro, nunca freqüentou as páginas de um jornal, não tocou no rádio e, muito raramente, fazia shows assistidos por meia dúzia de gatos pingados.
Eis uma figura lamentável, anti-modelo, quase uma caveira.
Em nossa conversa por menos de duas horas no bar do Amarelinho, entre alguns copos de chope, pude vislumbrar em seu semblante o cansaço de um herói fracassado. Chegou a me passar um cd com boa parte de sua obra. Ao ouvi-lo, depois em casa, reparei que suas canções, por mais simples que fossem, tinham algo de estranho. Foi isso possivelmente que causava o afastamento das intérpretes. À medida que se isolava, as canções se tornavam mais estranhas ainda.
Hoje parece um monstro. Quando fala, tem-se a impressão que estamos diante de um estrangeiro. A sua fala tomou a forma de suas canções: intraduzível.
Nunca teve uma intérprete – isso lhe deu a impressão de caminhar sobre o abismo. Há quem possa argumentar que suas músicas simplesmente não chegaram aos ouvidos de sua virtual intérprete. Mas em tempos de internet, esse argumento é impossível.
Quando nos despedimos, olhei-o, de relance, se afastando. Parecia ligeiramente corcunda. Não sei porque mas nesse exato momento me lembrei do goleiro Castilho, que na Copa do Mundo de 58 e 62, em que fomos campeões, viria a ser barrado por Gilmar, goleiro do Santos. Ao final da vida, depois de uma longa experiência como treinador, o grande Castilho daria o seu último salto. Dei mais uma olhada pra trás. Lá ia ele. Epaminondas Ferreira da Silva, um compositor sem intérprete. “Não tem amigos e mora numa caverna”, pensei comigo. E tratei logo de esquecê-lo.
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Imagem: pra yt/ divulgação