Trecho inédito de “O Fluminense que eu vivi – Volume 1”

Em agosto, no novo livro de nosso cronista Paulo-Roberto Andel, uma lembrança inusitada do ano de 1995.

“Estava anunciado: seria o maior Fla-Flu da história num domingo ensolarado do Carioca de 1995. O Flamengo ia estrear ninguém menos do que Romário, artilheiro campeão mundial de 1994 e melhor jogador do mundo via Fifa. E o Fluminense cogitava estrear Renato Gaúcho.

Ingressos antecipados no Teatro João Caetano, a cidade parou desde quarta-feira na expectativa do jogo.

Entorno do Maracanã abarrotado, gente por todos os lados, nenhuma vaga no estacionamento da UERJ.

Um jovem tricolor com seu walkman vermelho ouvia jazz e caminhava pela rua Eurico Rabelo, perto da entrada da tribuna de honra, quando se deparou com um ônibus 638 (Saens Peña-Marechal Hermes-volta no mundo) estacionado, abarrotado, com as portas fechadas e sinais de confusão:

– MENGOOOOOOO!

Na traseira do ônibus, uma superlotação e gente saindo pelo ladrão. Através da última janela do lado direito, o popular calote. Um, dois, cinco, oito. Vinte.

De repente, um outro jovem com a camisa rubro-negra para, coloca a perna direita para fora da janela, mas hesita em saltar o metro e meio até a gratuidade da calçada. O ônibus explodiu no banco de trás:

– Anda, feladaputa do caraio, que aqui tá foda e tenho que ganhar um ingresso!

Saída irregular interditada. Gritos. Tumulto e merderê por vinte segundos, até que o infrator resolveu saltar sem tirar a perna esquerda de dentro do ônibus, por um motivo especial revelado a seguir: ela NÃO existia. Era um amputado, temendo a queda numa perna só.

O pouso foi bem-sucedido.

O rapaz chegou ao solo e começou a pular rindo tresloucadamente enquanto a turma da traseira do ônibus comemorava um verdadeiro gol. Em seguida, um novo caloteiro desceu trazendo uma muleta. Os dois amigos caminharam felizes para a direção do Bellini, talvez para ganharem ingressos, com a sensação do calote cumprido.

O jovem ouvinte de jazz boquiaberto com a cena, de um jeito que nem Ornette Coleman em “Free Jazz”, o grande álbum de 1959 que definiu o gênero, o deixaria após uma audição.

Outros inimigos da passagem paga continuaram a pular da janela com total felicidade. Ninguém pagou a passagem no 638. A roleta não se mexeu no Maracanã.

Dentro do estádio, um 0 a 0 morno, aquém da grandiosidade do clássico – o único empate entre os dois times, num campeonato em que o Fluminense pintou e bordou nos Fla-Flus, coroados com o antológico gol de barriga.

Renato não estreou naquele domingo ensolarado, mas ainda ia mostrar muito serviço. Estava anunciado, estava escrito.”

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