Podia ser 1978 ou 1980, 1981 talvez. Começamos bem antes mas foi nessa época em que a chapa ferveu de verdade.
Sonhava com as seis horas da manhã de domingo, exatamente feito agora. Esperava o pedido e o dinheiro: pão, leite, queijo, presunto, ovo, todos os jornais. A padaria podia ser Santa Margarida ou Anita Garibaldi. A banca, Siqueira ou Figueiredo. Em qualquer caso, ao sair da portaria, dar uma olhadinha à direita para saber se tinha alguém no Sniff’s.
Wendell, Edevaldo, Tadeu. Paulo Goulart, Miranda, Ademílton. Moisés. Edinho. Que crise o Fluminense vivia, dois ou três anos sem ser campeão. Que dor!
O grande sinal era depois das onze da manhã. Geralmente tinha jogo do campeonato paulista na TV. Quando o pai mandava ir buscar lasanha pronta, era quase certo de ter Maracanã. Eu descia para a Trattoria Torna sonhando com a fatia, o sabor, o banho, o 435, chegar no Maracanã deserto e sentar perto da entrada, lá ficando como um cão fiel permanece ao lado de seu dono. Provavelmente a relação entre lasanha e jogo era simples: havendo dinheiro para o grande prato, sobrava o troco para os ingressos.
A sensação de sair de Copacabana e cortar os bairros até chegar ao estádio imortal é indescritível, maravilhosa. Sendo de 435, melhor ainda porque passava na porta do estádio das Laranjeiras, esse mesmo tão desprezado pela ignorância histórica e falta de empatia. Bom, depois de uma hora de viagem, aparecia a imagem monumental do Maracanã à janela do ônibus. Às vezes era um jogo simples, de cinco ou dez mil pessoas; noutras ocasiões, clássicos de arrepiar com cento e trinta mil torcedores.
Se o Flu ganhasse, a volta no ônibus cheio era uma festa e a pizza na Bella Blu era garantida. Se perdesse, nem sempre, mas o domingo era o dia sagrado do futebol no coração do Maracanã. Curioso era que podia não ter Fluminense em alguma situação, mas o pai não dizia nada, apenas dava o caminho: Flamengo e Palmeiras, vamos para a torcida alviverde; Flamengo e Campo Grande, vamos para a torcida do Campusca. Era assim.
Foram anos difíceis mas admiráveis. Lutávamos pela sobrevivência mas o futebol nos resumia. O pão que o diabo amassou em 1978 e 1979 foi trocado pelo café com leite da deliciosa vitória de 1980. E ser campeão de mãos dadas com o pai não tem preço. Ele não falava, mas sentia alguma felicidade, é claro.
Depois daquela noite imortal do gol de Edinho, nos encontramos e nos perdemos muitas vezes. Só a maturidade permite entender os desenganos. Sofremos e fomos felizes. O Fluminense nos manteve próximos até o fim. Era algum jogo, alguma contratação ou venda, um acontecimento, uma conversa qualquer. Nos separamos uma hora antes daquele Fluminense e São Paulo imortal. Ele se foi, meu irmão foi embora e fiquei sozinho para sempre no sonho da lasanha e de pegar o 435. Por isso comecei a escrever sobre o meu time, para espantar a solidão. E é o que me trouxe até aqui.
Faltou dizer daqueles garotinhos pretos magrinhos, pobres, às vezes descalços ou com chinelos engraçados. Quando íamos para a bilheteria, eles vinham “Tio, tio, me ajuda por favor”. O pai contava o bolinho de dinheiro falido com a inflação mensal de 70%, comprava três ou quatro ingressos e dava. Eu lembro dos sorrisos, dos olhos de jabuticaba brilhando para subir a rampa imortal do Maracanã. “Obrigado, tio! Muito obrigado, tio!”. O pai não sorria. Parecia apenas ter cumprido um dever, mas era algo tão forte e profundo que, quarenta e dois anos depois, não há gente ruim no meu clube que me faça desistir dele – e olhe que são muitas.
Logo mais tem jogo, longe, sem torcida. Não vai ter lasanha nem pizza, nem 435, nem a deliciosa sensação de estar na porta do Maracanã sonhando em entrar. Há muitos pais e filhos chorando seus mortos nos últimos dias. Não vai ter pai, nem irmão, nem garotinhos sonhando com um ingresso, mas de alguma maneira aquele velho ritual de muitos domingos atrás persiste.
Talvez seja o que chamam de sina.
Em memória de Helio Andel.
Panorama Tricolor
@PanoramaTri @pauloandel
#credibilidade
Parabéns !!! Aos 73 anos fui as lâgrimas emocionado com seu texto. Parabéns e obrigado por seu amor ao nosso Tricolor.
Andel: eu que te agradeço, Luiz.
Texto profundo Andel. Também aprendi a ser tricolor com meu pai. A 600 km do Rio, no norte fluminense, sem idas ao estadio, sem lasanha, época de vacas magras, magérrimas, meu pai homem simples, rude, exigente consigo e conosco, trabalhador e honestissimo. Não nos deixou um centavo, mas deixou exemplo e forças pra lutar e vencer na vida. Não te conheço pessoalmente, mas lendo tuas crônicas, já o considero um amigo.
Andel: abraçaço geral, Xavier.