Sobre ídolos eternos (por João Leonardo Medeiros)

João Leonardo

Tenho pena do jovem Robert. Acredito que sua carreira terá um triste e breve fim, por conta de uma visível incompatibilidade entre o que ele acha que é e o que ele é de fato. É visível que, desde novinho, em casa e fora dela dizem a Robert que ele é, independentemente do que faça, o grande craque de sua geração, ao menos em Xerém, quiçá no mundo. O rapaz ouve isso desde as fraldas, desde antes de alcançar a formação psicológica suficiente para a autocrítica. Poderia chegar a um exame de consciência sozinho com o amadurecimento, mas foi conduzido à força para um terreno problemático da existência: aquele que constitui o que chamamos de “sem noção”.

Robert passou um período terrível no Fluminense antes de viajar para Barcelona. Estava fora de forma, andava em péssimas companhias, acidentou-se gravemente de carro saindo de uma noitada daquelas, não jogava absolutamente nada. A experiência não despertou no menino um pingo de juízo, não o fez perceber que todos os grandes craques treinaram muito na carreira. Mesmo Romário só dispensou treinos já formado, já plenamente constituído, mas treinou incansavelmente no Vasco para acompanhar Roberto e no PSV para tornar-se o que se tornou.

O jovem Robert acha ou achava (torço eu) que nasceu com um dom que a vida não podia sacar-lhe, não importa o que fizesse. Teve a oportunidade de treinar no clube em que a meninada, doutrinada pela tevê, sonha toda noite em jogar. Apresentou-se gordo, absurdamente fora de forma, mas acha que o problema foi uma decisão do técnico. Agora volta (ou não) ao Fluminense. Se continuar com a mesma atitude, em breve estará emprestado ao Avaí, para pegar experiência. De lá vai para o Vila Nova, para o Figueirense, para o Paysandu, para a Polônia etc. etc. etc.

Espero que alguém salve Robert antes que seja tarde demais. Não pelo bem do Fluminense apenas ou prioritariamente, mas pelo bem do próprio rapaz.

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Estou bastante impressionado com a performance de Gum neste campeonato brasileiro. Nosso eterno titular tem demonstrado a firmeza de 2012 e 2013, aliada à tranquilidade de um veterano. Marca bem, não se desespera, não tenta armar o time (coisa que não sabe fazer) e ainda marca seu companheiro de zaga, péssimo. Não tenho dúvidas de que suas atuações o credenciam à seleção do campeonato, condição que dificilmente se efetivará porque em geral as análises não são minimamente isentas.

Faço questão de, hoje, ressaltar o futebol de Gum. Já escrevi ressaltando sua figura humana quando ia mal em campo, como forma de cobrar respeito a um jogador que já havia nos entregue muito, jogado bem e atravessava má fase no retorno de uma contusão.

Os críticos do Gum do ano passado não queriam saber de nada, o chamaram de “lixo”, qualificativo que deveria ser reservado apenas aos seres humanos capazes de praticar estupros, assassinatos, tortura e outras barbaridades. Tirando esses casos patológicos, não há “lixo” humano, mas pessoas com qualidades e defeitos. Gum tem defeitos como jogador, está longe de ser um Maldini ou Thiago Silva, mas também tem qualidades. De todo modo, quantos são Maldinis e Thiagos? Há, abaixo deles, muitos zagueiros de ótima qualidade, outros bastante competitivos. Gum está nessa leva e, adicionalmente, é um excelente profissional e parece ser ótimo ser humano. Está no Fluminense há sete anos como titular e tem lugar no panteão de ídolos do clube.

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Um pequeno salto para a coluna, um grande salto para a humanidade. Falemos de Muhammad Ali. Estava cozinhando com a tevê ligada quando passou uma reportagem do jornal Hoje sobre a vida de Ali. Fiquei com vergonha alheia – revoltado, na verdade. Ali foi apresentado como um grande esportista e ponto final. Só mostraram sua carreira, enfatizando suas vitórias, pelo menos.

Como uma reportagem pode ser tão absurda, tão parcial, tão politicamente deformada na seção de obituário? Ali não foi apenas um dos maiores lutadores de boxe de todos os tempos; foi, acima de tudo, um dos maiores exemplos de reação contra injustiças de toda sorte. Ali foi um inconformado por natureza, uma revolução em corpo humano, um vulcão da transformação social impulsionada por atos singulares.

Ali não poderia mesmo viver no mundo de hoje. E isso por uma razão: não havia nele um pingo de incompatibilidade entre teoria e prática. Converteu-se ao islamismo; logo mudou de nome (nasceu Cassius Clay). Engajou-se na luta contra o racismo; por ela jogou no Rio Ohio a medalha olímpica que conquistou. Era pacifista; foi em cana, mas não aceitou lutar no Vietnã. Ali não era uma coisa em pensamento, outra em ação, era uma unidade (o que talvez explique até sua atuação fantástica como boxer).

Duas das três histórias que mencionei são impressionantes. A primeira é aquela em que ele entra numa lanchonete na volta dos jogos olímpicos de 1960 (em que, ainda menino, surpreendeu o mundo esportivo com o ouro). Ao pedir um cachorro quente, foi informado pelo garçom de que “A lanchonete não serve negros”. A resposta de Ali é reveladora de sua inteligência: “Eu não quero comer um negro, quero comer um cachorro quente”. A lanchonete firmou o pé, mesmo sabendo que se tratava de um medalhista olímpico e, ao sair do salão, passou no tal do rio e tascou o penduricalho na água.

O segundo caso é do final dos anos 1960, quando Ali se recusou a combater no Vietnã. Por isso, tiraram-lhe o direito de lutar boxe por três anos e chegaram a meter-lhe em cana. Ali justificou sua recusa a vestir o traje do exército americano no conflito por duas razões. Primeiro, por ser um homem de convicções religiosas sinceras, era pacifista. Não tratava a morte, o genocídio, como algo instrumental, algo que possa ser justificado por uma razão externa (no caso, a cruzada fanática contra o comunismo e o interesse econômico mascarado na batalha ideológica). Em segundo lugar, Ali via mais inimigos em casa do que no Vietnã. Numa entrevista sobre o tema, disse ele: “Nenhum vietnamita jamais me chamou de crioulo [niger], por que eu lutaria contra ele?”

Voltando ao início: esse é o “nível” dos nossos meios de comunicação. Eu contei uma ou duas histórias de Ali e creio que todos já perceberam que não é possível reduzir sua importância histórica à condição de “grande lutador de boxe”. Mas, para muitas direções de jornalismo dos noticiários brasileiros, Ali só tem direito à eternidade como lutador de boxe. Sua luta contra os interesses estabelecidos, contra o racismo, seu pacifismo, sua coerência ideológica, tudo isso é impertinente. Que se danem os maquiadores ideológicos, enquanto houver opressão no mundo, Ali significará exatamente o que foi: um bastião da resistência em favor do ser humano. Se tem alguém que merece ser chamado de eterno, esse é Muhammad Ali.

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Panorama Tricolor

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Imagem: ali

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